Provedor do telespectador: um argumento contra a caixa de Pandora

TV Ombudsman: an argument against Pandora’s Box

 

Madalena da Costa Oliveira

Braga (Portugal)

     
             
             
     

RESUMEN

     
     

Transformar uma dor individual num sentimento colectivo de sofrimento é uma capacidade de todos os meios de massa. Todavia, a televisão tem a este título um poder tremendamente grande. A capacidade de reunir milhões de telespectadores à sua frente é o seu mais admirável mérito, mas também o seu mais temível perigo. Sobretudo quando estão em causa direitos humanos, como o direito à privacidade ou a não sofrer no espaço público, a procura de qualidade surge não somente como uma obrigação do governo como também como um dever de cidadania de todos os espectadores.

Não sendo propriamente novidade em alguns países europeus, a existência do Provedor do Telespectador1 só será uma realidade em Portugal este ano. O governo aprovou um diploma para a criação desta figura que deverá avaliar a programação e a informação do canal público RTP. Como os provedores dos leitores que conhecemos, também o Provedor do Telespectador será a pessoa que receberá as críticas e as observações dos telespectadores, as avaliará e emitirá sobre elas um parecer para a administração do canal.

Sendo um procedimento de auto-regulação, o Provedor do Telespectador é fundamentalmente uma entidade de vigilância da ética da televisão. Essencialmente é uma plataforma de diálogo entre jornalistas, programadores e telespectadores. Tal como na imprensa, o Provedor é um mediador. Ainda que não seja provavelmente uma garantia absoluta de qualidade, o Provedor do Telespectador é seguramente um argumento dos cidadãos contra os males difundidos pela caixa que se crê ser aquela por onde passa o mais importante das nossas vidas.

     
      ABSTRACT      
     

To transform an individual pain into a collective feeling of suffering is a capacity of all mass media. However, television has, in this point, a tremendous power. The capacity to join millions of TV viewers in front of itself is its most admirable merit, but it’s also its most dreadful danger. Principally when the point are the human rights, as the right of privacy or the right of not suffer in the public space, the demand of quality appears not only as an obligation of the Government but also as a duty of citizenship of all TV viewers.

Although it is not properly a novelty in some European countries, the existence of a TV Ombudsman2 will be a reality in Portugal only this year. The Government has approved a legal diploma to create this figure, which will evaluate the programming and information of the public channel RTP. As the ombudsmen of press that we already know, the TV Ombudsman will be the person who receives the critics and observations of TV viewers, evaluates them and writes about them an impression to the administration of the channel.

Being a self-regulatory proceeding, the TV Ombudsman is fundamentally a mechanism that implicates citizens. It is not only an entity of vigilance on ethics of Television. It is essentially a platform of dialogue between journalists, programmers and TV viewers. As in the press, the Ombudsman is a mediator. Although it is probably not an absolute guarantee of quality, TV Ombudsman is surely an argument of citizens against the bad things diffused by the box that we believe is the one by which the most important of our lives goes trough.

     
      DESCRIPTORES/KEYWORDS      
     

Defensor, auto-regulación, ética, ciudadanía.

Ombudsman, self-regulation, ethics, citizenship.

     
     

A crise da magia televisiva

No livro Sobre a Televisão, Pierre Bourdieu adverte que «actualmente entre os jornalistas da imprensa escrita (…), vemos desenvolver-se um discurso extremamente crítico em relação à televisão» (Bourdieu, 2001: 54). A verdade é que muitas são hoje as vozes que gritam contra os ecrãs. Promotora do espectáculo, que, de acordo com Guy Debord, é o modelo de vida socialmente dominante (Debord, 1992: 17), a televisão tem sido vista frequentemente como a caixa de Pandora, origem de todos os males.

Os encantos da imagem em movimento, prometida nos anos 1920, foram sendo progressivamente suplantados por impressões apocalípticas acerca dos efeitos dos ecrãs. Metáfora de perversidades, a televisão é hoje o ícone emblemático das sociedades desenvolvidas, assentes na sucessão de imagens, na fruição sensível do presente e numa espécie de transparência do mal, característica, como em Baudrillard, dos fenómenos extremos. «Captar uma morte que está a ocorrer e embalsamá-la para todo o sempre é», por exemplo, segundo Susan Sontag, «algo que apenas uma câmara pode fazer» (Sontag, 2003: 65).

Depois do homo videns, é afinal o homo sensibilis que a televisão nos apresenta um ser que, à revelia do projecto racional moderno, entrega o seu espírito no gozo de uma afecção puramente emocional. Sendo, aliás, o meio por excelência de extensão dos sentidos e cumprindo nesta medida o desejo de McLuhan de prolongar tecnologicamente a nossa pele, a televisão desenvolve emoções, afectividade e imaginação; estão nela a visão e a audição e quase estão o gosto, o tacto e o olfacto. Nela se sintetiza por isso uma experiência do real, que quer dizer uma experiência do acontecimento quase em acto. Mágica, pois, pela potência da imediaticidade e do instantâneo, a televisão prescreve-se, no entanto, no preciso momento em que subverte a lógica dos meios de comunicação de massa: a de mediarem a nossa relação com a realidade.

Ora, promovendo a transmissão da vida em directo, a televisão, mais do que qualquer outro mass media, é a responsável pela alteração das relações que estabelecemos com o espaço e o tempo dos acontecimentos. Ainda inadaptados a este precipício ou confluência entre as circunstâncias da realidade e as circunstâncias da nossa experiência da realidade, não vivemos senão a crise da magia televisiva. Os abusos de liberdade de expressão, a devassa da vida privada, a manipulação deliberada de imagens, uma certa fabricação dos acontecimentos (fruto da ânsia de directos) e a exploração de emoções (nomeadamente do sofrimento alheio gerado em acontecimentos de cariz traumático)bastam para descrever a decadência do encanto da televisão.

Não querendo, todavia, assumir uma condenação do meio à morte, é de um processo de reinvenção que podemos aventar a possibilidade, baseando-o num conjunto de interrogações: Que significam as complexas interconexões estabelecidas pelas potencialidades televisivas? Que efeitos tem na experiência humana de todos os dias a mediatização visual dos acontecimentos? Onde permanece a essência humana no contexto da dominação tecnológica dos ecrãs? Que impacto tem, em termos de cidadania, a globalização televisiva, expressa nos fluxos incessantes de informação internacional? Sem aspirar ainda a respostas definitivas, estas são questões que deve colocar-se quem, como o Provedor do Telespectador, pretende um argumento contra a inevitabilidade da caixa de Pandora.

1. Da mediação à imediaticidade

A instantaneidade progressiva das novas tecnologias fomentou aquilo que conhecemos hoje como uma quase «ditadura» do que faz notícia à última hora, promovendo alguma insensibilidade à memória de uma comunidade e à sua história. O que importa é, cada vez mais, o que está a acontecer. Sobretudo, porque o que importa é sentir, e para sentir é necessário viver as coisas no seu momento. Retomando a formulação de Mario Perniola, poderíamos dizer que os media recusam hoje o «já sentido» que «remete para experiências que já aconteceram, para um sentir por definição pretérito e reificado». Ao contrário, preferem o «fazer-se sentir», que «é inseparável da experiência do presente, da flagrância do nascimento». Com efeito, «o importante é o que acontece sempre aqui e agora» (Perniola, 1993: 104).

Este imperativo de tempo, extremamente condicionado também pela concorrência entre meios, sobretudo televisivos, que se intensificou nos primeiros anos do milénio, está a lançar as bases para a problematização da actividade mediática. Do jornalismo ao entretenimento, os paradigmas estão a mudar, acima de tudo em função de uma espécie de pele tecnológica que consolida uma disfunção relativamente ao tempo e ao espaço. Na verdade, o arquétipo de mediação que referencialmente caracterizava a actividade mediática está a dar lugar a um modelo organizado em torno de um princípio de imediaticidade, fonte de parte dos equívocos anotados hoje à televisão.

Os momentos dramáticos que se viveram ao nível internacional desde 2001 (a partir do ataque terrorista ao World Trade Center, nos EUA), instauraram um debate acerca dos limites do uso de imagens, sobretudo quando a questão é o tratamento informativo de situações de trauma social. O 11 de Setembro (2001), o 11 de Março (2004), as guerras do Afeganistão (2001), Médio Oriente (2002) e Iraque (2003), assim como o tsunami asiático (2004) e os atentados no metro e num autocarro em Londres (2005) são exemplos emblemáticos de como os meios audiovisuais usam elementos estratégicos de fidelização de audiências que se aproximam, muitas vezes, da imoralidade profissional: o uso astucioso da emoção, a exibição de sofrimentos privados (mais, muito mais, do que alegrias) e o recurso a elementos de estímulo de atenção são modos de funcionamento que expressam uma certa expectacularização do espaço televisivo.

Não sendo absolutamente coincidente com o tempo da realidade, o timing dos directos enfatiza a tese de que o «meio» e a mediação deram lugar, como defende Bragança de Miranda (1999) ao «imediato»3. Considerando que «a medialidade, enquanto movimento, circulação, passagens, foi sempre reprimida», o autor constata que «o desejo que alimenta a metafísica (…) é o da instantaneidade» (1999: 296). Ora, partilhando deste anseio pelo instantâneo, o jornalismo, particularmente o jornalismo televisivo, entrega-se à ideologia da imediaticidade, acarretando aquilo que Bragança de Miranda chama «o fim da representação, e em geral, de toda a distância, sentida sempre como obstáculo à comunicação instantânea e imediata» (295).

À margem das reportagens diárias de guerras como a do Médio Oriente, do Afeganistão e do Iraque, ganharam destaque as reportagens de contexto, de pormenor, de comunidades, enfim… de sensibilidades do repórter enviado especialmente ao palco de conflitos. A transmissão em directo e a estratégia de antecipação das rádios e televisões preencheram-se com a informação sobre os combates, mas também sobre os cenários, as populações, as histórias de vida4.

A contaminação da imprensa (jornais e revistas, em papel e on-line) por um certo modus faciendi da televisão é também, no caso dos acontecimentos enunciados, de justa reflexão. A exposição das vítimas e o uso frequente de palavras-choque, como «barbárie», «catástrofe», «atentado», «tragédia» e «massacre» e de grafias de forte impacto, como «11-S» e «11-M», que se mantêm como bandeiras de dossiers temáticos de alguns órgãos de comunicação social (disponíveis on-line5) são, na realidade, resultado deste modo de agir para informar. Num texto publicado a 12 de Março, no jornal «El País», Juan Luís Cébrian advertia, curiosamente, para o facto de ser objectivo primeiro dos grupos de terroristas ou de comandantes de forças militares o contágio de toda a sociedade pelo terror, pelo medo e pela desgraça que atinge apenas alguns. Um dos perigos do exacerbamento das coberturas, às vezes imponderadas, de tragédias da dimensão que se conheceu aos atentados de Nova Iorque e Madrid seria, pois, para o jornalista espanhol, o risco de a sociedade mediática ser «aliada principal e vítima preferente do terrorismo moderno, uma vez que se trata de submeter a opinião pública à ditadura do terror, da desconfiança e do medo» (Cébrian, 2004). Eis aqui o poder da televisão, elevado à máxima potência.

Decorrentes sobretudo do inesperado, do imprevisível e do acidental, os acontecimentos dramáticos não têm os media à espera (muito menos a televisão que exige recursos/equipamentos de grande envergadura). No entanto, a partir do momento em que os meios tomam conta dos factos, o efeito surpresa e o efeito choque dão lugar à insistência, ao esgotamento e a uma certa saturação. A exposição do luto, por outro lado, foi um fenómeno de equiparáveis efeitos. A morte de várias figuras públicas, por exemplo, especializou, talvez de um modo particular na televisão, os jornalistas em exploração de momentos de reserva da intimidade. A mediatização de cerimoniais fúnebres converteu momentos de pesar, por natureza, privados, em acontecimentos mediáticos de interesse generalizado. Expoente máximo do prolongamento de notícias de óbitos foi a morte do futebolista Miklas Féher, durante um jogo transmitido em directo pela televisão generalista, em Janeiro de 2004. Depois da surpresa da queda de um jogador desfalecido em campo, a notícia fez-se em redor da família, da namorada e dos colegas de equipa. O desfecho, que poderia ter ficado suspenso com a transladação do corpo para a Hungria, só viria, porém, a revelar-se completo com a transmissão em directo, pela TVI, do funeral do jogador.

2. Os perigos da tele-emoção

«Informar sobre o sofrimento e a dor requer dos profissionais da informação sensibilidade, humanidade, discrição e compreensão» considera, para Cristina Mañero (1997). Resultado, muitas vezes, da combinação de uma comunicação factual com uma comunicação baseada em testemunhos pessoais, a reportagem sobre acontecimentos tão sensíveis como os que marcaram estes anos tem, à partida, dois perigos iminentes: por um lado, o facto de o jornalista ser, ele próprio, um ser sensível ao que observa, sujeito à ambiguidade e à subjectividade da forma como sente os factos, tantas vezes em directo, sem tempo para uma reflexão que se imporia por dever de distanciamento crítico. Por outro, a tentação a que, deliberadamente ou não, os media, sobretudo os televisivos, cedem à exploração da tragédia, na ânsia de reunir a melhor e maior audiência possível.

Uma espécie de reportagem ou mediatização sensível tem vindo a aparecer. A primeira Guerra do Golfo (1991), a primeira reportada em directo, já tinha transformado totalmente o paradigma jornalístico da televisão. No entanto, os primeiros anos deste milénio foram determinantes para consolidar este novo género que poderíamos chamar de cobertura mediática sensível. É de um jornalismo tremendamente mais emotivo que podemos falar. Em vez de um discurso objectivo, baseado principalmente em factos, o que nós recebemos dos media e da televisão em particular, é um discurso sensível, tocado e comprometido. À informação factual acresce uma informação sobre sensibilidades.

A cobertura mediática da dor pelas imagens capturadas pela televisão é, de facto, uma maneira de aproximar os jornalistas e outros profissionais dos media do público. A informação sobre guerras, catástrofes naturais e especialmente sobre o terrorismo toca o público. Toda a gente quer hoje saber mais sobre os americanos que estavam no World Trade Centre e cuja morte a televisão captou praticamente em directo. Todos nós quisemos partilhar da dor de centenas de famílias afectadas pelo 11 de Março em Madrid. Toda a gente à volta do mundo manifestou solidariedade para com as vítimas do Tsunami Asiático6. Quem não quis saber das crianças sequestradas na escola russa (Beslan, 2004). Quem pode ignorar o sofrimento de Terry Schiavo?7

No que respeita à informação atravessada pela emoção, podemos identificar três tipos de emoção bem presentes nos momentos televisivos mais significativos: a) por um lado, a emoção dos jornalistas que reclamam a sua condição de seres humanos. Como podem eles suprimir os seus sentimentos quando estão a reportar alguma coisa extremamente sensível? Como é possível reportar uma catástrofe com milhares de vítimas de modo apenas objectivo? O que dizer então dos medos dos jornalistas, das suas impressões e sensações? b) por outro lado, a emoção dos agentes da notícia. Por que é que uma dor individual é tópico de notícia? Ao contrário de outros tempos, quando os media audiovisuais como a televisão se ocupavam de assuntos políticos, económicos e culturais, hoje assuntos mais pessoais e de interesse particular parecem começar a ganhar relevo também. Mais popular do que nunca, a televisão tende a dar espaço a outras fontes de informação–a vox populi é ouvida como fonte de informação, com a mesma relevância dada a um porta-voz oficial8.

Ions or sensations? b) By the other hand, there is the emotion of the news actors. Why is an individual pain topic of news? Unlike other times when journalism was particular interested in political, economical and cultural issues, today more personal or particular issues seems to become important too. More popular than never, mass media tend to give space to other sources of information–the vox populi is listened to as source of news, with the same relevance that journalists give to official spokesmen.Esta atenção para com os cidadãos anónimos é certamente o reflexo da democratização dos mass media. c) Finalmente, podemos considerar um terceiro nível de emoção, o que o jornalismo gera no público por reportar alguns assuntos. Brevemente, poderíamos dizer que esta arquitectura da informação sensível põe ser definida como uma informação que os jornalistas produzem baseados na sua própria sensibilidade sobre a emoção de alguns agentes de modo a gerar emoção no público, uma afecção colectiva sobre a realidade.

Apesar de esta nova geração mediática mostrar o outro lado da realidade impossível sem as potencialidades da televisão a questão é que reportar sobre assuntos emotivos, especialmente a dor, tem alguns riscos. O primeiro é o risco de converter um jornalismo independente em jornalismo de adesão. Os princípios clássicos do jornalismo estão, na realidade, seriamente comprometidos. Esta mudança de paradigma tem a sua mais pragmática expressão na falência da objectividade. Num post colocado no seu weblog no início de 2005, Dan Gillmor sugeria que «talvez fosse tempo de nos despedirmos de um velho cânon do jornalismo: a objectividade» (Gillmor, 2005). No entanto, admitindo que a objectividade é uma ideia valiosa, o autor propõe a sua substituição por «quatro outras noções que podem acrescentar a mesma coisa». Definindo-as como pilares do bom jornalismo, ele estabelece a eficácia, a exactidão, a imparcialidade e a transparência como maneiras úteis de aproximar os media de um jornalismo de qualidade. De acordo com Gillmor, estes conceitos são «abertos a interpretações mais amplas», mas em certo sentido poderíamos dizer que eles expressam a alma do jornalismo moderno. Estes são, de facto, atributos característicos do que nós esperamos da tecnologia. Este desejo de informação imediata é exactamente o desejo de transparência. É este o sentido da idade mecânica; de outro modo, como poderíamos falar de exactidão e eficácia?

Outro risco deste jornalismo epidérmico, gerado pela televisão e pela concorrência entre canais, é o abuso de liberdade de expressão. Às vezes, para não dizer sempre, reportar a dor torna-se umaactividade muito lucrativa. A dor reúne as pessoas. Poderia ser o mesmo dizer que reportar sobre dor reúne os telespectadores e os leitores. Os meios audiovisuais têm um forte poder para transformar, como previu Karl Kraus, um jornalista austríaco (ou anti-jornalista, como alguém disse), emoções e paixões moderadas em histeria e euforia, o orgulo nacional em delírio nacionalista e xenofobia e o medo em pânico. O poder para transmitir em directo o que está a acontecer num ataque terrorista, por exemplo, não é independente do risco de causar pânico no público. Quando uma doença epidémica se torna notícia, os media jornalísticos desenvolvem um importante papel informando os cidadãos, mas eles podem ao mesmo tempo gerar pânico e provocar a desordem de multidões9.

Sentimentos radicais, como a euforia ou o pânico, têm realmente efeitos muito fortes: juntam o público. O resultado é muitas vezes uma confusão entre informação e sensacionalismo, porque osjornalistas desenvolvem frequentemente um exagerado esforço para tornar a informação interessante10. Às vezes parece que o que interessa em primeiro lugar é envolver as pessoas na emoção colectiva das notícias. Profissionalmente, uma discussão ética é inevitável. Apesar dos aspectos positivos desta atenção global para com assuntos internacionais, nomeadamente assuntos de humanidade, reportar factos que apelam aos sentimentos emotivos tem quase sempre como consequência um debate sobre ética e deontologia. Quais são os limites da missão de informar? Quanto podem os jornalistas envolver-se naquilo que estão a reportar? Devem os jornalistas desculpar-se quando não desenvolvem correctamente as suas actividades?

Eticamente discutível, o recurso à emoção como estratégia de concentração da atenção do público, demonstraram-no os acontecimentos de grande dramatismo a que nos referíamos acima, cria, na verdade, embaraços deontológicos de difícil superação. Regista-se, numa tentativa de síntese de várias críticas apontadas no seio da própria imprensa, a falta de distância, a confusão entre o que é informação essencial e o que é informação acessória, a falta de respeito pela intimidade dos indivíduos e pelo seu direito à protecção da imagem, a predisposição para espectacularizar, o apoio em testemunhos pessoais e os excessos generalizados no uso da liberdade de expressão.

3. Um provedor por detrás dos ecrãs

A crítica de televisão é uma prática permanente na imprensa há vários anos. Em Portugal, as páginas de comunicação e as secções de media nos jornais apareceram precisamente com a publicação da programação e de comentários sobre os programas televisivos, sobretudo desde a abertura dos canais privados, a partir de 1992. Os especialistas crêem que a amplificação do espaço televisivo à iniciativa privada mudou completamente o panorama audiovisual. A televisão passou a ser notícia, ora por uma questão puramente económica, ora por ser um meio com tremendos efeitos no público. De um modo ou de outro, a televisão foi o factor desencadeador de uma crítica generalizada dos meios de comunicação jornalísticos no seio dos próprios media, aquilo que para efeitos da análise que desenvolvemos chamamos de metajornalismo.

Ainda que não seja propriamente novidade em alguns países, a figura do Provedor do Telespectador só será uma realidade em Portugal este ano. O governo aprovou um diploma para a criação desta figura que deverá avaliar a programação e a informação do canal público RTP (bem como do canal de rádio, serviço público, RDP). Não são ainda conhecidas as circunstâncias de actuação desta actividade, nem quem a exercerá, mas prevê-se que partilhe publicamente todas as semanas, numa emissão de cerca de 15 minutos, as reflexões desenvolvidas a partir das observações dos telespectadores, à semelhança das colunas semanais que os provedores de imprensa assinam nos jornais. Como os provedores dos leitores que conhecemos, também o Provedor do Telespectador será, por isso, a pessoa que receberá as críticas e as observações dos telespectadores, as avaliará e emitirá sobre elas um parecer para a administração do canal.

Sendo um procedimento de auto-regulação, o Provedor do Telespectador é fundamentalmente um mecanismo que implica os cidadãos. Não é, por isso, somente uma entidade de vigilância da ética da televisão (não pretende sequer, ao que parece pelas primeiras informações veiculadas pela imprensa, substituir uma entidade reguladora como a que substituirá a Alta Autoridade para a Comunicação Social). Essencialmente é uma plataforma de diálogo entre jornalistas, programadores e telespectadores. Tal como na imprensa, o Provedor é um mediador.

As críticas enunciadas por analistas confirmam a tese de Popper, segundo a qual «em anos recentes, a televisão não parou de degradar-se.» (Popper, 1999: 16). Mais que um perigo para a democracia como sistema político, o poder que a televisão adquiriu é um perigo directo para o cidadão. É a sua integridade que é comprometida pelos abusos da televisão. Por isso, ainda que não seja provavelmente uma garantia absoluta de qualidade, o Provedor do Telespectador é seguramente um argumento destes cidadãos contra os males difundidos pela caixa que se crê ser aquela por onde passa o mais importante das nossas vidas.

Promovendo um discurso meta-televisivo, uma vez que encerra uma reflexão sobre a televisão no meio televisivo, esta medida do governo para o operador público configura, creio, um desafio para os canais privados. Os operadores privados tenderão para adoptar um regime de auto-regulação de forma a responder a estas exigências de qualidade dos meios audiovisuais. A iniciativa é, para já, do governo para os canais de serviço público de rádio e televisão, mas previsivelmente os operadores privados acompanharão estas medidas, pelo menos por motivações de ordem concorrencial. Portanto, a criação de Provedores dos Telespectadores deverá ser uma prática generalizada, pelo menos nos canais de sinal aberto. Factor de credibilidade, a figura do provedor é uma promessa metajornalística para uma problematização dos ecrãs e do seu papel em matéria de cidadania. Talvez seja também um instrumento para dizer qual é «a televisão que queremos», no sentido de efectivarmos um serviço televisivo de qualidade.

     
     
Referencias
     
     

BAUDRILLARD, J. (2003): La transparência del mal: ensayo sobre los fenómenos extremos. Barcelona, Editorial Anagrama.
BOURDIEU, P. (2001): Sobre a Televisão. Oeiras, Celta Editores.
CÉBRIAN, J.L. (2004): «Terrorismo en el Pozo», en El Pais, 12 de Março.
DEBORD, G. (1992): La société du spectacle. Paris, Éditions Galimmard.
FIDALGO, J. (2001): «Entre a Televisão e o Jornal», en Público, 16 de Setembro.
GILLMOR, D. (2005): «The end of objectivity», en
https://dangillmor.typepad.com/dan_gillmor_on_grassroots/2005/01/the_end_of_obje.html
MALHEIROS, J.V. (2001): «O que é que sentiu?», en Público, 13 de Março.
MAÑERO, C. (1997): «Cuando el dolor es noticia», en ISTMO, 231, Julho/Agosto.
MIRANDA, J.B. (1999): «Fim da Mediação? De uma agitação na metafísica contemporânea», en Comunicação e Linguagens, 25/26, Março.
PERNIOLA, M. (1993): Do sentir. Lisboa, Editorial Presença.
POPPER, K. (1999): Televisão: um perigo para a democracia. Lisboa, Gradiva.
SONTAG, S. (2003): Olhando o sofrimento dos outros. Lisboa, Gótica.

     
     
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Em Espanha, o nome é «Defensor del Telespectador».

2 InSpain, the name is «Defensor del Telespectador».

3 Em Setembro de 2001, a propósito dos atentados terroristas às Torres Gémeas, Joaquim Fidalgo, então provedor dos Leitores do jornal «Público» referia-se, a propósito do directo televisivo e do domínio dos ecrãs na cobertura dos acontecimentos, ao enfraquecimento do trabalho mediador dos jornalistas. «Assim, com os acontecimentos a desenrolarem-se minuto a minuto frente aos nossos olhos, o trabalho jornalístico de mediação com os espectadores torna-se menos visível, por vezes até totalmente silencioso, embora decisivo na escolha do que se mostra…» (Fidalgo, 2001)

4 As reportagens marginais aos conflitos têm, por outro lado, a particularidade de configurarem trabalhos de elevado valor estético. Já em meados da década de 90, uma reportagem da jornalista portuguesa Cândida Pinto, intitulada «Meninos de Angola» (SIC) tinha sido reconhecida com vários prémios nacionais e, em França, pelo prémio de Direitos Humanos do FIGRA (Festival Internacional da Grande Reportagem e do Documento de Actualidade). «Mulheres de Bagdad» é, já neste quinquénio, outra das reportagens da jornalista (emitida pela SIC a 5 de Novembro de 2003) que assinala a preponderância deste tipo de trabalhos.

5 Um dos temas do livro Journalism after September 11, de Barbie Zelizer e Stuart Allan (2002), é precisamente a questão da relação entre as fotografias noticiosas e o trauma social. Noutro prisma, aborda ainda a questão do bem-estar emocional dos repórteres.

6 Houve até quem se referisse a este tsunami como o tele-tsunami.

7 Em Portugal, a queda de um autocarro e dois automóveis ao rio Douro, em Março de 2001, quando a ponte que atravessavam se partiu, tornou-se um exemplo emblemático do papel das televisões neste tipo de acontecimentos. Mais de 50 pessoas morreram. Os jornalistas permaneceram no local do acidente durante mais de um mês, enquanto as equipas de salvamento tentavam encontrar os corpos das vítimas dentro de água. Todos os olhos se fixavam no rio para ver quando apareceria um corpo. No entanto, como havia muitos dias sem novidade, os jornalistas tentavam preencher os espaços informativos com qualquer coisa que pudesse interessar as pessoas. Por isso, começaram a entrevistar os amigos e familiares das vítimas, tentando explorar o que estavam a sentir. Esta atitude motivou muitas análises críticas, como a de Vítor Malheiros, no jornal Público de 13 de Março de 2001. Extremamente irónico, o texto questiona esta ânsia de saber o que se sente, de querer que os «sofredores» partilhem a sua dor: «O que é que sentiu? O que esperam em troca desta pergunta? Uma reflexão sobre o sentido da vida,o absurdo da morte, a fragilidade dos homens? Sobre a impossibilidade de explicar o que se sente nestas circunstâncias? Por trás da pergunta esconde-se um convite: desabafe para as câmaras, dê-nos um soluço, um grito dilacerante, mostre-nos o inominável, em vinte segundos, não se acanhe, queremos a sua dor, queremos partilhar a sua dor.»

8 Analisando o serviço informativo da televisão, tornar-se-ia evidente esta tendência. Frequentemente os repórteres entrevistam cidadãos anónimos na estrada, perguntando simplesmente «O que é que pensa sobre…?» Teve medo de…? O que é que faria se…? «Estes são apenas alguns exemplos deste fenómeno: antes de um jogo de futebol, os jornalistas ouvem as vozes populares procurando prognósticos para os resultados; depois do jogo, procuram reacções. Os cidadãos anónimos ganham efectivamente domínio no espaço público.

9 Embora não seja possível prever rigorosamente um maremoto, quando os media informaram sobre a possibilidade de um novo tsunami em alguns países da Ásia, eles contribuíram de alguma forma para gerar situações de pânico. Este é o risco ou a dupla face da informação instantânea. Em Portugal, milhares de pais entraram em pânico quando os media informaram sobre vários casos de meningite.

10 Apesar de estes riscos serem, principalmente, próprios da estratégia televisiva, por causa do poder das imagens, a lógica da informação imediata, de que o jornalismo on-line é a melhor expressão, contamina a imprensa, nomeadamente no que se refere à escolha de títulos, às opções gráficas, à selecção de fotos, ao ângulo de abordagem.

     
     
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Madalena da Costa Oliveira es profesora del Instituto de Ciencias Sociales de Braga (Portugal) (madalena@bragatel.pt).