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1. Área temática
Televisão e educação
No contexto da mídia educação, tanto o cinema quanto a televisão desempenham diversas funções. Além de ser uma forma da cultura, são instrumentos de conhecimento, meio de comunicação de pensamentos, meio de expressão artística e formas de representação da história e do sujeito.
Considerar a televisão e o cinema como um meio, significa entender que eles atuam no âmbito da consciência do sujeito e no âmbito sócio-político-cultural, configurando-se num formidável instrumento de intervenção, de pesquisa, de comunicação e de educação. No entanto, considerá-los como um meio, não significa reduzir seu potencial de objeto sócio-cultural a uma ferramenta didático-pedagógica destituída de significação social, pois sabemos que a experiência estética possui um importante papel na construção de significados.
Se o cinema está presente na educação há muito tempo (Rivoltella, 1998), e se hoje a televisão constitui um dos eixos dos sobre os quais a mídia educação está centrada, há que situar suas relações e especificidades a partir do seu uso-reflexão. Faremos isso a partir de uma pesquisa realizada com crianças sobre sua relação com o cinema(1). Vimos que hoje, no contexto brasileiro, muitas crianças só têm acesso aos filmes do cinema via mediação da televisão ou do vídeo-cassete. Se a televisão penetrou profundamente na vida pública espetacularizandoa sociedade de forma que nada mais lhe possa ser exterior, quase tudo o que acontece no mundo, de alguma forma pressupõe a sua mediação, e o que não passa pela mídia eletrônica torna-se estranho ao conhecimento e à sensibilidade contemporânea.
Neste sentido, é importante refletir sobre o que tal relação possibilita e impede em termos de construção do significado e da experiência estética considerando que as mediações educativas na relação criança, cinema e televisão, podem ajudar a entender alguns aspectos dos limites e das possibilidades dos consumos culturais.
2. Relação cinema e televisão
Que tipo de relação as crianças estabelecem com os filmes que foram feitos para cinema quando são exibidos na TV? Que diferença tem assistir aos filmes no cinema ou na TV? Vejamos algumas respostas sobre isso no olhar dos teóricos.
Sabemos que essa questão envolve uma complexidade que esconde e revela diversos fatores. Comecemos a reflexão com algumas aproximações e distanciamentos entre cinema e televisão. O cinema será entendido como produção cultural, prática social e reflexão teórica com dimensões estéticas, sociais, cognitivas e psicológicas, e também pode ser considerado como uma síntese de momentos de arte, dispositivo e linguagem. Sem aprofundar uma definição, o termo televisão é um muito amplo e se aplica a uma imensa possibilidade de produção, distribuição e consumo de imagens e sons eletrônicos, compreendendo o que acontece nas grandes redes comerciais, estatais e intermediárias, nacionais ou internacionais, abertas ou pagas, até o que ocorre nas pequenas emissoras locais ou nas produções independentes.
Assim, tanto o cinema quanto a televisão implicam um complexo aparato cultural e econômico de produção, distribuição, veiculação e consumo de imagens, sons, informações, divertimentos, publicidades e também participam dos processos de construção (e negociação) de sentidos que significam os modos de ser, pensar, conhecer e se relacionar consigo, com o outro e com a cultura. Em diversos contextos sócio-culturais, a televisão ainda é um dos meios mais difundidos, configurando-se como instância de cultura que oferece lazer, informação e entretenimento, e muitas vezes o faz de forma espetacularizada.
Em relação ao cinema e seu confronto com a televisão, os programas se apresentam com uma aproximação sistêmica cada vez maior, mas o que resta ao cinema para distinguir-se? A estética pode oferecer uma resposta, diz Sorlin (1997, p. 14).
Na época em que o cinema monopolizava o uso da imagem e do som, a apreensão estética não era tão evidente e entrada da televisão foi mudando tal perspectiva multiplicando os produtos e modificando a prática de escuta, pois enquanto o cinema era domínio da arte e da presença atenta do espectador, a televisão constituía o reino do divertimento e da escuta intermitente.
Além da discussão sobre autoria que o audiovisual permite reformular, a questão da materialidade faz a diferença nas diversas formas de apreensão e interação estética no cinema e na televisão, pois redimensiona a obra e a forma com que o «artista coletivo» e o público entram em contato com ela. Diferente da pintura, da música e da poesia que têm uma apreensão material com assinaturas e traços visíveis e acessíveis, o audiovisual não tem materialidade, existe só enquanto é projetado e sua autoria é coletiva, apesar da discussão a respeito do trabalho de direção. Assim, o produto do audiovisual não existe fora de sua projeção e não possui materialidade tangível, pois existe enquanto está sendo visto. «O audiovisual tem essa característica de ser impalpável confrontando entre os dados sensíveis que se deixam quantificar (altura do som, tonalidade das cores, contrastes de luzes) e outros que não permitem. Talvez esse seria um bom ponto de partida para interrogar-se sobre as categorias que a estética sustenta sobre os elementos materiais postos em jogo em cada prática artística» (Sorlin, 1997, p.13).
Embora os audiovisuais só existam no tempo - o que não significa que esse seja seu traço específico vistoque a música, a dança e o teatro também só são acessíveis no instante em que se desenvolvem -, sua imaterialidade pode ser vista por outro ângulo.
Analisando problemas e metodologia da transcrição gráfica do audiovisual, Rivoltella situa que o audiovisual possui uma presença física que deriva de sua «reprodutibilidade técnica», pois o filme e o vídeo como suporte físico estão destinados à permanência e não estão sujeitos a variações (a não ser as físico-químicas do próprio suporte), resistindo e permanecendo no tempo. Diferentemente, o espetáculo e a performance teatral vivem no efêmero e do efêmero sempre modificando-se e não resistindo no tempo, pois nada pode suceder a percepção e a emoção que a presença durante a representação pode garantir. «Fisicamente o audiovisual é presente, permanece presente mesmo depois de sua enunciação, o texto-espetáculo não.(...) um filme sobrevive a sua projeção, o espetáculo teatral não existe a prescindir da sua representação» (Rivoltella, 1998, p39-40).
Diante disso, estudiosos da estética audiovisual tiveram que, de um lado classificar os sistemas já existentes, e de outro lado ampliar a idéia do belo e de estética, pois embora a noção de beleza apareça nos mais antigos documentos escritos, a estética concebida como exercício autônomo da reflexão foi desenvolvida recentemente, numa época em que quase todas as artes eram objetos de um discurso teórico que se referia a uma materialidade concreta.
Neste sentido, Sorlin (1997, p.13) considera a experiência audiovisual pós-estética, que se faz observar diretamente como pesquisa expressiva e o gosto expresso sobre ela se desenvolve influenciando-se reciprocamente. Como o audiovisual possui elementos que permanecem (imagem em movimento) e outros que se modificam (origem da imagem), como pensar uma arte que descobre a si mesma?
Se antigos instrumentos não dão conta de avaliar uma experiência nova, não se pode ficar limitado ao existente, sendo necessário pensar e construir outros instrumentos de análises propiciados pelas novas sensibilidades e tecnologias.
No caso da TV, ela possui uma relação ambígua com outras práticas artísticas. Num certo sentido, ela engloba outros meios e práticas artísticas ao descobrir e/ou informar sobre diversos artistas e seus trabalhos possibilitando o alcance do público à visão de sua obra, ainda que na pequena tela. Noutro sentido, além de permitir certo conhecimento do mundo deixando-o perceptível a todos, a televisão também revela e esconde vários aspectos, criando uma representação que funciona como modelo, hierarquizando outros âmbitos da produção artística.
Instrumento potente e flexível, capaz de alcançar quase todos os pontos do planeta ao mesmo instante, a televisão se tornou um dos principais vetores da comunicação e «ninguém seriamente discute a utilidade da televisão ou o lugar que lhe compete nas trocas ou na informação, mas em geral ainda é considerada um simples instrumento privado de valor estético» (Sorlin, 1997, p.202).
Mas por que a televisão de um modo em geral desilude? Por que seus programas são medíocres ou conduzem à mediocridade? indaga Sorlin. Normalmente costumamos separar os objetos culturais como livros, discos, jornais dos conceitos de literatura, música ou informação. Distinguimos técnicas de projeção e características específicas do filme de uma imagem desfocada ou de um som incômodo e responsabilizamos o cinema e não o produtor. Tal comparação pode ser útil e esclarecedora, pois se entre inúmeros livros publicados e tantos filmes realizados em cada ano, poucos solicitam nossa participação estética, em conseqüência, porque com a transmissão televisiva, bem mais numerosa que os produtos cinematográficos, seria diferente?
Próxima do cinema, a televisão é inseparável do retângulo sobre qual se manifesta. Concebida para o olho e o ouvido, a televisão repete e multiplica os efeitos já usados no cinema e usando formas inéditas graças à informática e à eletrônica, simula situações possíveis e oferece visões que fogem ao olho humano através de uma aproximação infinitamente pequena ou extremamente grande, etc.
No entanto, tal união entre cinema e televisão não autoriza a colocá-los numa mesma categoria diz Sorlin, pois um aspecto que deve ser levado em conta quando se fala do cinema é o da duração da projeção e isso cria uma enorme distância entre eles.
A idéia do cinema remete a idéia espaço temporal em que o espectador mesmo ignorando o horário de saída, manterá sua atenção - vigilante ou não - mobilizada por um determinado espaço de tempo inserido no seu programa do dia. E isso está claro tanto para os produtores como para os espectadores, pois a referência ao tempo de projeção limitada é clara.
Mas na televisão, a duração não existe, é fluxo contínuo. A teoria do fluxo, um dos conceitos chave de Williams a respeito da televisão como forma cultural, representa um guia para a compreensão da linguagem da televisão, pois o fluxo reconduz a experiência televisiva em si. «Em todos os sistemas de programação (broadcasting) a organização típica do conteúdo, e consequentemente, a experiência que se faz, é aquela da seqüência ou do fluxo (flow). Este fenômeno, o fluxo planificado, é provavelmente o elemento característico da programação, seja como tecnologia seja como forma cultural» (Williams, 2000, p.106).
Assim, a transmissão sem interrupção por 24 horas, um programa ou pedaço de programa após o outro, intercalado por comerciais num fluxo ininterrupto de sons e imagens adota um ritmo sensivelmente diferente daquele que pode existir no filme. Se a transmissão ininterrupta é o elemento chave da televisão, essa lógica fundamental da continuidade regula o uso que se faz dela, tanto pelos responsáveis pela programação - que não devem interromper o fluxo -, quanto pelos espectadores que podem escolher o que ver ou adaptar-se ao que é oferecido.
Nessa lógica da produção televisiva e de seus usos, «o que importa é o que configura as condições específica de produção, o que da estrutura produtiva deixa vestígios no formato, e os modos com que o sistema produtivo – a industria televisiva – semantiza e recicla as demandas oriundas dos «públicos» e seus diferentes usos» (Barbero, 2001, p.311). E são essas lógicas de uso que ditam os diferentes lugares no palimpsesto.
Se a televisão apresenta a particularidade de não jogar com a duração, pois o que dura é a «grade», a maior parte das transmissões televisivas se sujeita ao ritmo do mundo e mesmo que varie de pontos de vista, não cria ilusões de um tempo elástico nem manipula a duração. Diferente do cinema, cujo controle da velocidade é uma ilusão. Embora a velocidade de projeção seja imutável, no cinema o que muda não é o tempo em si mas a representação do tempo, que é flexível e este trabalho sobre o tempo atua para criar significados.
Enquanto no cinema um espectador atento assiste aos filmes do seu interesse, no uso da televisão é a prática fragmentária e descontinua que, de certa forma também envolve uma espécie de ritual, que obriga a «assistir a uma escuta». Para Sorlin, essa instabilidade do telespectador não é necessariamente uma desvantagem, pois ao mesmo tempo em que autoriza a fuga ou a distração, permite substituir a escuta rígida da mobilização de todo o corpo por uma escuta mais descomprometida, leve e desatenta.
Se por um lado, nas imagens corriqueiras do cotidiano ou dos meios de comunicação em que certas imagens habitam tão repetidamente em nossas vidas, deve ocorrer uma desatenção necessária, pois observar e perscrutar tudo seria insano, por outro, há a necessidade de selecionar determinados olhares lançados para a televisão retirando-os por instantes daquele conjunto de objetos que «olhamos quase sem olhar» (Fischer, 2003, p57). Para a autora, os espectadores, imersos no cotidiano e atentos a outras atividades, vêem televisão dispersivamente enquanto conversam e se movimentam pelas peças de suas residências, almoçam, atendem ao telefone, recebem amigos. E a linguagem básica da TV funda-se nessa dispersão e busca formas de responder a ela, pesquisando ritmos, selecionando sons, atores, personagens, a fim de produzir imagens e diálogos que capturem atenção e emoções. E é a partir do pressuposto da dispersão de quem olha, que se constrói um modo especifico de constantemente capturar o espectador distraído, nem que seja por uma frase ou por rápidas imagens(2).
Essa questão da atenção, entre tantas coisas, faz perceber que a discussão sobre planos e tomadas é outra diferença ente o cinema e a televisão. Enquanto no cinema o movimento e a enquadratura se determinam reciprocamente numa relação que se transforma continuamente criando outros modos de combinações inéditas e instáveis, na televisão é diferente. Nela e no vídeo, as imagens precisam ser tratadas como imagens eletrônicas que são, e por serem feitas para serem vistas numa tela pequena, isso faz diferença. Além da distância que a imagem eletrônica pede, tecnicamente, isso faz com que a exposição do fragmento e dos primeiros planos, sejam selecionados para dar conta daquilo que se quer narrar. Enquanto nas telenovelas, os rostos e os detalhes alternam-se com diversas paisagens, nos documentários, nos programas de entrevistas, nos telejornais, e inclusive nos comerciais, são as talking heads «cabeças falantes» que se transformam em imagens protótipos da midia eletrônica, como diz Machado. Para ele, falar diretamente ao espectador pressupõe sua presença, ao contrário da narrativa transparente em que os eventos aparecem por si sós. «Em nenhum momento da recepção de um programa na tevê o espectador perde a certeza de que está em casa olhando para o aparelho que lhe traz a imagem reticulada de um talking head. Isso quer dizer que um espectador de tevê, mesmo solitário, não é nunca o individuo isolado e desprotegido que caracteriza o espectador da sala escura do cinema» (Machado, 1988, 49-50).
Imagens e sentidos não se separam, mostram e dizem algo para o espectador que também pode dizer algo sobre o que elas mostraram, numa interpenetração de imagem e produção de sentidos. A imagem que alguém constrói « é sempre elaborada no cruzamento de múltiplas relações, de experiências individuais e sociais, de ordem psicológica e principalmente de ordem política e cultural» (Fischer, 2003, p.64-5). E nesse cruzamento, há uma inseparabilidade entre as imagens internas que construímos sobre as coisas e as imagens externas dos objetos visuais, perceptíveis e materiais.
As imagens audiovisuais são construídas com elementos de diferentes linguagens, basicamente as linguagens oral, escrita, icônica, plástica, gráfica, digital, sonora, musical e essas formas de comunicar, que também estão presentes no teatro, no rádio e no cinema, são incorporadas e recriadas na construção dos produtos televisivos. E tais expressões culturais configuram-se de uma forma muito particular na especificidade do vídeo e da TV.
Considerar a televisão de um ponto de vista puramente estético pode ser insuficiente, visto que o que ela oferece cotidianamente é muito questionável. Para Sorlin, a mediocridade dominante na produção televisiva depende exclusivamente de uma certa lógica comercial, pois a televisão tem um horizonte que vai além dos jogos de prêmios e programas de auditório, sendo também portadora de combinações e conflitos. «A televisão não é um apêndice nem uma perversão do cinema, é um outro sistema de escritura: retoma uma grande parte dos materiais e das técnicas do cinema, mas a sua lógica é tão diferente, que seria absurdo querer avaliá-la com a mesma medida que se usa para a sétima arte» (1997, p.240).
Assim, podemos perguntar o que poderia ser uma estética da televisão?«O potencial estético da televisão reside na fluidez, a continuidade verbal é permeável e por isso pode ser acompanhada, sustentada, ultrapassada, ou absolutamente contradita de movimentos, transgressões, justaposições, invasões de cores que quebram e movimentam a monotonia. A infiltração do discurso é um recurso sempre disponível que às vezes intervém por acaso, por breves momentos, e outras depende de uma escolha prévia.» (Sorlin, 1997, p.240). Para o autor, a única limitação vem do sistema televisivo enquanto tal, visto que possui o objetivo de comunicar e deve atender e agradar a exigência do público, mesmo quando o faça com margem de liberdade.
Considerando que a participação estética é sempre, em última análise, um fato pessoal mas contextualizado, como acolher a experiência estética quando ela consiste em uma apresentação dispersiva, baseada em fragmentos selecionados deliberadamente por cada sujeito? A partir de que elemento comum se formaria o argumento fundante de tal participação?
O uso da televisão alterna atenção vigilante, escuta distraída e desinteresse total. As várias redes de televisão produzem histórias, telefilmes, novelas, reportagens fechadas e tantos outros programas, mas o público faz o uso que quer no seu «percurso errático zappeador»: salta o começo, assiste um pedaço do desenvolvimento, pula outro sucessivo, confunde os personagens, perde o fim, divide os programas e vai (des)construindo sua inteligibilidade nesse movimento.
O detalhe técnico participa de um modo de estar, de fazer e de ver televisão e sabemos quequando esse modo acontece na sala escura do cinema, adquire maior força. Mas o contrário é verdadeiro? Se algumas características da produção televisiva diferenciam-se do cinema, como ficam as produções feitas para o cinema quando exibidas na televisão? O que perdem em termos de sua definição original e o que ganham e/ou modificam em termos de atualização das outras sensibilidades que esse meio propicia?
No percurso da história, o cinema transformou o olhar em relação à fotografia, que por sua vez modificou o olhar em relação à pintura e por aí afora, numa trajetória que poderia ser resumida nas diferentes formas de olhar desenhos, retratos, afrescos, quadros, pinturas, esculturas, fotografia, teatro, café-concerto, cinema, televisão, vídeo, computador, Internet. Assim, vão surgindo novas práticas e isso muda a atitude no confronto com as obras de arte, os juízos se modificam e os apaixonados vão introduzindo outros critérios de avaliação. E mesmo que tal processo ocorra num ritmo que tende a ser cada vez mais acelerado, nenhum percurso artístico se desenvolve a partir do nada, são processos de continuidades e rupturas em que a estética aparece na dupla perspectiva: hereditariedade do passado e expectativas criadas no presente.
As novas formas que as obras vão assumindo impõem outras formas de com ela se relacionar, e esses e outros novos elementos vão desafiando a percepção e construindo outras formas de interação. Assim, é no contato com obra, no caso o filme, que a significação se constrói como conjunto daquilo que o filme nos propõe relacionado ao conjunto daquilo que cada um de nós acolhe e acata como percepção, impressão e experiência pessoal que é sempre contextualizada.
Sobre o peso das variáveis e valor do contexto nas formas de recepção, «não existe a fruição, mas singulares atos de fruição que estão sempre situados no interiorde um preciso contexto ambiental, temporal e cultural; o impacto pedagógico, positivo ou negativo, do meio depende de todos estes elementos e da sua recíproca interação» (Rivoltella, 1998a, p.150).
No entanto, se o significado é o todo, no contexto narrativo fílmico e extra-fílmico, as histórias, os elementos fílmicos, as posturas vão além da ficção, dos gestos, dos corpos, dos percursos, dos cenários, das roupas, das matizes, das variações, dos efeitos da luz, das músicas e suas impressões fundem-se nas configurações do filme. No momento em que a história - em suas formas e conteúdos - aparece e se manifesta para cada um, encontra continuidade e ressonância no espaço-tempo da projeção, unindo-se às sensações e histórias pessoais.
No processo de identificação e negação, o filme visto no cinema provoca um contínuo movimento de fuga e reencontro. E nesse encontro atingimos a magia que restitui nossa participação ampliada, pois o «filme excita assim, tanto uma identificação com o semelhante como uma identificação como estranho, sendo esse segundo aspecto o que quebra nitidamente com as participações da vida real» (Morin ap Xavier, 1983 p.164). Nesse percurso de fuga e reencontro, as identificações e negações, os momentos de plenitude e de vazio absoluto, possibilitam a catarse que pode retirar da fraqueza a força num plano simbólico, sem sofrer necessariamente suas conseqüências, tal como acontece em algumas brincadeiras (Fantin, 2000).
No entanto, quando o filme é visto na televisão - pela especificidade deste meio em que a narração permanente está radicada no cotidiano e se afirma na continuidade – acontece outro tipo de significação bem diferenciada a partir de outras formas de recepção. Se materialmente o mesmo filme «não muda» quando exibido no cinema ou visto na televisão, o modo de interrogá-lo e com ele se relacionar será sempre diverso, pois será sempre determinado pelo contexto em que se inscreve.
Esta questão também diz respeito aos modos de endereçamento a partir dos quais as produções foram pensadas. Elisabeth Ellsworth trabalha tal conceito no cinema e na televisão situando que não bastam pesquisas de mercado para definir o perfil dos possíveis consumidores e elaborar as estratégias de criação de um programa ou filme. Essa relação é complexa, pois mesmo com a interpelação de um suposto público, não há certezas, visto que o espectador, além de poder responder de um jeito diferente do esperado, assiste a programas que não foram pensados para ele. «Há uma tensão entre o direcionamento a um público especifico e a sombra das grandes maiorias, do público disperso e zappeador da televisão (...). A possibilidade de errar o alvo é permanente e está incluída nesse «espaço volátil», imprevisível e incontrolável, entre o filme e o público, entre a tevê e seus espectadores» (Fischer, 2003 p.81).
Estudar o modo de endereçamento de um filme fundamenta-se em duas questões básicas: «quem este filme pensa que você é» e «quem este filme quer que você seja». Trata-se de um processo cheio de nuances e de tensão que envolve diversos procedimentos e técnicas de linguagem, de expressividade, de ritmos, de seleção de imagens, de tempos, de tramas narrativas, e fundamentalmente, envolve uma relação entre o individuo e o social.
Assim, analisar filmes e programas televisivos a partir dos modos de endereçamento ultrapassa o domínio das regras ou estratégias de linguagem de cinema ou televisão. Há que associar a especificidade da linguagem audiovisual a questões de ordem pessoal, individual, psicológica com questões de ordem cultural, política e social mais ampla. E isso remete à questão da produção, circulação e interpretação de significados na cultura e nos modos de construção de sentidos em um dado contexto. Além disso, estudar a linguagem desses produtos culturais, seus detalhes, suas escolhas éticas e estéticas de uso da imagem, dos sons, da musica, dos planos, dos diálogos, dos tempos, considerando que eles existem por que foram feitos por alguém para alguém, é uma das possibilidades da mídia educação.
Neste sentido, a reflexão crítica sobre as impressões e sensações decorrentes do filme é indispensável, pois a apreensão estética não é simplesmente uma experiência interior, ela nasce a partir de uma troca social através de instrumentos conceituais construídos em determinada época. Ou seja, se em termos de produção audiovisual muita coisas mudou, a participação estética vai se exprimindo de um modo também diverso, reproduzindo, manifestando e também construindo outras relações. Por outro lado, a perspectiva de uma estética continuamente cambiante, pode parecer «vertiginosa» e neste sentido Sorlin argumenta que a noção de obra pode ser usada como ponto seguro. «Se o gosto se modifica com base na preocupação manifestada em cada época, as obras, invés, permanecem (...). E ainda que o modo de escutar seja um comportamento social que dependa do ambiente e do período, isso não significa que o público não remodele e liberte a obra» (Sorlin, 1997, p.278).
Assim, o modo de sentir, escutar, ver e analisar a obra é um comportamento social e a apreensão estética que se abre ao universo da criação solicita as mais diversas áreas, posturas e atitudes que poderão ser problematizados pela mediação educativa.
3. Assistir filmes no cinema e na televisão
Diante de tantas diferenças entre cinema e televisão e suas diversas possibilidades de participação estética, a diferença entre assistir um filme no cinema e na televisão, continua um terreno de conflitos. Conceitualmente, poderíamos pensar que o filme sendo arte e/ou mercadoria continuaria a sê-lo independente do meio. Mas considerar o cinema como arte, mercadoria, dispositivo e linguagem e seus filmes em espaços diferenciados daqueles em que foram pensados, modifica a forma de apreensão estética, visto que as interações que ali se estabelecerão vão ser mediadas por diversos fatores. Além do que, se o significado da obra é o todo, cada vez mais, estudos apontam a importância do contexto de fruição no processo de significação e apreensão estética.
O cinema envolve todo o contexto em que se assiste ao filme e significa muito mais do que «apenas» o ato de ver um filme. Assistir a um filme em casa ou na escola, na televisão ou em fita de vídeo envolve variáveis que modificam a forma de percepção e significação. O contexto de fruição é outro, a luz da TV é diferente, a perspectiva interna da imagem é diferente, a atenção é diferente, o espaço é outro.
A respeito dessas significações, estudando a produção e leitura de filmes constitutivos de práticas sociais, Casetti e Odin, a partir da perspectiva da semio-pragmática, estudaram como os filmes e suas linguagens produzem sentidos e influenciam os espectadores. Casetti fala em um «pacto comunicativo» como negociação, interação e cooperação pragmática que ocorrem entre texto e espectadores. Para Odin, o «espaço de comunicação» constituído pelo produtor e espectador de cinema é extremamente diverso, indo do espaço pedagógico da sala de aula, passando pelo espaço familiar do filme assistido em casa chegando até o espaço ficcional e de entretenimento da cultura midiática (ap Stam2003, p. 280). Diante disso, em que medida espaços de comunicação extremamente diversos como cinema, casa e escola, asseguram condições de recepção que se adequem às exigências da experiência da significação?
Considerando a distinção que Metz faz entre filme (discurso localizável como texto significante) e cinema (instituição cinematográfica como fato sócio-cultural que inclui acontecimentos pré-fílmicos, pós-fílmicos e a-fílmicos), poderíamos pensar nos procedimentos significantes específicos da linguagem cinematográfica. O autor considera o cinema como um meio «pluricódigo» que combina códigos especificamente cinematográficos e códigos não-específicos, pois também são partilhados com outras linguagens que não o cinema, e a linguagem cinematográfica como a totalidade de códigos e subcódigos cinematográficos.
Assim, embora alguns materiais de expressão específicos do cinema sejam partilhados com outras artes, ainda que em novas e velhas configurações, outros permanecem exclusivos do cinema. Além disso, o cinema tem seus próprios meios materiais de expressão cinematográfica (câmera, filmes, luzes, travellings, estúdios de som) e seus meios de procedimentos audiovisuais. Para Stam (2003, p.140), a questão dos materiais de expressão remete para o desenvolvimento das novas tecnologias, e ele pergunta - sem responder - se «um espetáculo em IMAX, uma narrativa em um CD-Rom ou uma obra de videoarte continua sendo filme?».
Comparando o cinema à televisão, Metz conclui que, em que pesem as diferenças tecnológicas (o fotográfico x eletrônico), as diferenças de estatuto social (cinema como um meio consagrado e a televisão segue desprezada), e as diferenças de recepção (tela grande do cinema x tela pequena doméstica, atenção concentrada x atenção dispersa) eles constituem praticamente a mesma linguagem. Por compartilharem importantes procedimentos lingüísticos (escalas, sons, créditos, efeitos sonoros, movimento de câmera, etc.), para o autor os dois sistemas seriam vizinhos, pois os códigos específicos pertencentes a ambos são mais numerosos e significativos que os não pertencentes. (ap Stam 2003, p.142).
Para os teóricos psicanalíticos interessados na dimensão psíquica da «impressão de realidade» do meio cinematográfico que buscam explicar o imenso poder do cinema sobre os sentimentos humanos, «a capacidade de persuasão do dispositivo cinematográfico foi analisada como resultado de um conjunto de fatores - a situação cinematográfica (imobilidade, escuridão) e os mecanismos enunciativos da imagem (câmera, projeções óticas, perspectiva monocular) – todos os quais induzem o sujeito a projetar-se na representação» (Stam, 2003, p.185).
Diante disso, parece que certos efeitos subjetivos destes fatores perdem sua especificidade e sua importância quando vistos na televisão, levando a pensar que tal poder de persuasão e impressão de realidade perdem muito de sua força no contexto televisivo, doméstico ou escolar. Sem falar no ritual específico de ir ao cinema, que envolve uma preparação, uma saída, um passeio, ver gente, assistir ao filme ao lado de outras pessoas, enfim, compartilhar emoções que fazem a diferença do meio cinema em relação à televisão. Neste sentido, o distanciamento e o estranhamento que o espaço da sala de cinema permite construir a partir da evasão do tempo-espaço que tal sala propicia, na televisão e no ambiente doméstico ou escolar tais aspectos estão longe de poderem ser reproduzidos. Então como fica a importância deste distanciamento na construção de significados?
Estudos de cinema mais recentes readequaram a teoria do dispositivo visando considerar a visão de filmes não apenas na sala clássica ou Cineplex, mas também nos vídeos em casa, nos aeroportos, aviões, ônibus, etc. O tipo de atenção concentrada dedicada à imagem de alta definição em sala escura, distingue-se radicalmente do tipo de recepção dispersa em algo movimento (como avião, ônibus) ou do contexto doméstico. E embora o conceito de atenção seja algo que vem sendo redimensionado nas novas gerações com a interação simultânea de vários meios, penso que a atenção que o contexto da sala de cinema propicia seja decisiva para a diegese do filme.
As novas formas de atenção e interação, o «Pós-cinema», a Teoria digital e os Novos Meios, trazem outros elementos para discutir o cinema. Se qualquer reflexão sobre os novos meios deve considerar seus usos e potencialidades em tempos e espaços específicos, também deve apontar limitações. Um dos limites é que a democratização midiática se restrinja apenas a uma minúscula esfera de privilegiados e que o acesso diferenciado está criando mais um tipo de exclusão, fazendo com que muitos teóricos se posicionem pareafraseando Gramsci «pessimismo do hadware e otimismo do software» (Stam, 2003, p.357).
Diante disso, além da importância de assegurar o acesso aos bens culturais e ampliar as experiências, há que considerar que a emoção do filme poderá estar presente em diversas possibilidades (sala de cinema, televisão, etc.), mas que será completamente diferenciada, pois não é a mesma coisa nem possibilita as mesmas formas de participação estética, de construção de significação e de apropriação. Embora uma envolva o fascínio da sala escura do cinema e outra faça parte do cotidiano doméstico, muitos outros fatores contribuem para que o filme seja percebido de forma diferenciada. Se isso continua a ser arte, não é fácil responder pois é difícil avaliar a dimensão artística do filme na TV.
4. Cinema e televisão no olhar das crianças
Considerando as possíveis transformações na imaginação das crianças em função do cinema e da televisão, «é preciso ver se arte do filme, do vídeo e de suas formas correlatas pode começar a gerar novas possibilidades de tradução das funções privadas da imaginação em formas estáticas. Provavelmente ainda não chegamos ao limite da possibilidade artística. De fato, a «dieta» de estimulação visual muito mais que caracterizar as gerações recentes criadas com o cinema e especialmente com a televisão, pode estar alterando os meios pelos quais experimentamos a consciência» (Buckingham, 1996, p.9).
Para saber como as crianças percebem as diferenças entre cinema e televisão, temos que «pensar em como a experiência da TV se liga concretamente ao cotidiano imaginativo das crianças levando em conta a cultura em que elas vivem» (Girardello, 2001). Assim, no contexto maior de uma pesquisa sobre a relação crianças, cinema e educação, realizada com crianças de 9 e 10 anos em diversos contextos sócio-culturais - uma escola pública e uma escola privada em Florianópolis (Brasil) e uma escola pública em Treviglio (Itália) -, busquei entender a construção de significados na relação criança-cinema e como a experiência da significação contribui para a formação estético-cultural das crianças a partir da mediação educativa. Entre outras questões relacionadas aos diferentes consumos culturais, precisava refletir sobre como as crianças viam esta questão a partir do contexto de fruição de filmes. Considerando as crianças como críticas reais e potenciais da cultura contemporânea, entendo que a pesquisa com crianças é uma das formas de compreender criticamente a produção cultural de nossa época. Assim, os olhares, as impressões e as vozes das crianças estão presentes nas observações, nas intervenções, nos questionários e nas entrevistas realizadas a fim de identificar como elas se relacionam com essa formas de cultura e como percebem suas diferenças.
Existe diferença entre assistir filmes no cinema ou na televisão? Quais?(Ver tabla 1).
Entre tantas diferenças possíveis de serem listadas e situadas historicamente nestes diferentes contextos, o fato do cinema ser considerado «mais legal» não chega a surpreender, pois a experiência do cinema é o todo, ou seja, é o filme e todo o contexto que envolve o ritual de ir ao cinema. Aliado a isso, a percepção óbvia da qualidade de imagem e do som numa tela maior.
Se tal percepção é evidente para as crianças italianas que explicitavam através de termos como áudio, som, volume, estéreo ou dolby, a ausência do elemento som nas diferenças apontadas por crianças de escola pública brasileira foi significativa. Será que a ausência não foi percebida pela pouca familiaridade com o meio? Será esquecimento? Ou este elemento não chega a qualificar uma evidencia para elas?No entanto, para as crianças brasileiras de outro contexto sócio-cultural, essa dimensão do som foi apontada e percebida, tanto na definição do cinema como na sua diferença na comparação cine-televisão.
Por outro lado, a única percepção a respeito de uma diferença crucial entre cine e TV que interrompe o fluxo narrativo do filme -conforme vimos anteriormente-, a de que na televisão tem comercial e no cinema não, foi feita por crianças da escola pública brasileira. Que hipótese podemos levantar? Será que para as outras crianças isso já está tão naturalizado que elasacabam achando que isso faz parte do filme?, como em Ladrões de sabonete, de Maurizio Nichetti, Itália, 1989. Será que a maioriadas crianças se referia a filmes na tv considerando os filmes em vídeo, portanto sem propaganda? Ou será que não foi percebido pelas crianças italianas devido as poucas interrupções comerciais que elas estão acostumadas a ver na TV por assinatura? Considerando tais hipóteses como forma de aproximação, o fato é que a meu ver essa ruptura da propaganda e é um dos grandes divisores de água que diferenciam os contextos de fruição e tal percepção, ainda que não expressiva estatisticamente, revela sua presença e uma instigante aproximação entre o olhar da criança e o olhar da reflexão teórica.
Na justificativa da preferência pelo cinema, também podemos perceber tal aproximação na sofisticada argumentação de que é diferente «porque o cinema possui uma atmosfera inquietante e atraente que te convida a viver emoções nunca antes experimentadas ou provadas, e ao invés, a televisão não atrai muitas emoções porque outras coisas te incomodam »(Valentina,9). Ou seja, o queesta menina italiana revela, coincide com a argumentação dos teóricos Sorlin e Stam a respeito, quando eles falam da atenção diferenciada, do clima propiciado pelo ambiente da sala escura do cinema e referenda também a concepção semio-pragmática do cinema, explicitada por Casetti e Odin, cujo contexto determina a experiência da fruição.
Ao mesmo tempo em que crianças italianas ressaltam que em casa ou na televisão se assiste aos filmes mais confortavelmente podendo deitar-se no sofá, o argumento de que em casa a família atrapalha, contrabalança um pouco isso. Tal questão aponta para o fato de que o consumo televisivo italiano é basicamente familiar, e no contexto doméstico a maioria dos filmes são exibidos para toda a familia. Fato este muito diferente do contexto brasileiro, cujas pesquisas nos últimos anos (Pacheco 1998) apontam que os programas mais assistidos pelas crianças não são os infantis e que na maior parte dotempo de seu consumo televisivo, o fazem na ausência dos pais.
Embora tal questão apareça com conotação diferenciada no contexto italiano, onde «a família atrapalha», há que levar em conta que a maioria das crianças italianas freqüenta a escola em tempo integral, e que a programação televisiva vespertina, em geral, não contempla filmes. Assim, diferentemente das crianças brasileiras que freqüentam a escola apenas meio período e que a televisão comercial exibe filmes e novelas durante a tarde, não sobra muito tempo para as crianças italianas assistirem filmes sozinhas, pois a noite a família se encontra. Se por um lado isso é importante como possibilidade de assegurar a mediação - mesmo que nem sempre é garantida pelas poucas condições que muitos pais têm de fazê-lo -, por outro, para algumas crianças tal presença atrapalha a fruição. Eu me pergunto em que sentido esse «atrapalhar» se manifesta. Será que é pelo tom «inevitavelmentemoralizante» utilizado nas possíveis mediações? Será no sentido objetivo de interrupções das mais diversas naturezas? Será na atitude cerceadora de certas liberdades? Ou será no sentido de tolher a autonomia e independência que as crianças necessitam construir? Talvez tudo isso, mas também, por outro lado, dependendo da fase em que a criança se encontre, pode ser justamente por esses mesmos motivos que tal presença é desejada, valorizada e altamente solicitada.
Assim, enquanto para algumas crianças brasileiras a diferença reside em que na televisão se assiste aos filmes sozinhos, para outras, na televisão (ou em casa) se assiste com a família, conforme diz a menina «No cinema tem a agitação do passeio, os pais se dedicam mais tempo e em casa a gente assiste sozinho» (Tainá, 9, EBBP). Tal fato também é explicitado por outra menina argumentando que «No cinema a tela é grande com muitas pessoas e na tv pequena com poucas pessoas». Ou seja, são diferentessituações em que tal prática se manifesta e isso remete para discussões a respeito da classe, do tempo e do horário livre em que as crianças assistem filmes na TV sozinhas, ou das possibilidades que a família têm de se encontrar para assistir filmes, «independente» de sua situação econômica.
Outro dado interessante sobre a relação cinema e televisão é a referência direta ou indireta que as crianças fazem à televisão em seus discursos sobre os filmes.
Fabrício: Quando eu assisto a um filme, na hora assim em que eles estão lutando, eu fico dizendo «não faz isso, não faz aquilo, não faz isso,» fico falando como se eu estivesse falando com o carinha na televisão, ajudando ele a lutar com o outro cara.
Lucas: Eu, dá vontade de ajudar a fazer na frente da tv...
RisosJoão Gustavo: Ah eu fico... mesmo sabendo o que vai acontecer no final do filme, eu
fico falando essas coisas assim, «que não vai..., que não vai dar certo, que não vai acontecertal coisa...» Esses negócios assim... Mesmo eu sabendo o final do filme, eu fico falando na frente de televisão que não vai dar certo, um monte de coisa assim...
Gabriel: Quando eu assisto um filme na TV me da vontade de dormir, depois quando eu acordo não sei porque dá vontade de assaltar a geladeira e às vezes de jogar futebol.
Esse diálogo é uma pequena amostra da presença da televisão, mais que do cinema, quando as crianças se referem aos filmes.
A respeito das crianças que disseram não ter diferença nenhuma entre cinema e televisão, a hipótese que levanto é a de que são crianças com que têm pouca familiaridade com o cinema. Fato este observado nos dois contextos, com uma presença maior nas respostas das crianças brasileiras, visto que a pesquisa observou que quase 40% delas nunca tinham ido ao cinema. E aqui surge uma inquietação. Alguns momentos parece que a distinção que Bourdieu se refere a respeito da classe e do capital cultural se confirma e faz toda a diferença. Mas noutros momentos as crianças indicam que as fronteiras não são tão delimitadas assim, e podem ser muitas as hipóteses a respeito (mas esse já é assunto para outro artigo).
Tendo visto a diferenciação cinema e televisão aos olhares dos teóricos e das crianças, restaagora uma licença poética para vislumbrar tal questão na canção e poesia.
No documentário Janelas da alma, de João Jardim e Walter Carvalho, Brasil, 2001, Wim Wenders diz «eu preciso do enquadramento, prefiro ver enquadrado». O cineasta se refere aos seus óculos e à possibilidade sentida como necessidade da armação para melhor enquadrar seu o olhar. Isso me lembrou a canção Pela janela do quarto, que por coincidência ou não também leva o nome janela em seu título, da cantora e compositora Adriana Calcanhoto. Referindo-se a outro tipo de enquadramento que a faz ver as coisas e que posso supor, seja o enquadramento televisivo: «(...) Eu ando pelo mundo divertindo gente.Chorando ao telefone.E vendo doer a fome dos meninos que têm fome. Pela janela do quarto.Pela janela do carro. Pela tela, pela janela. (Quem é ela? Quem é ela?). Eu vejo tudo enquadrado. Remoto controle (...)».
Se nessa canção Adriana se refere a uma forma de ver o mundo a partir do jeito de assistir televisão, em que as cenas se alternam enquadradas, vividas e selecionadas como num controle remoto, na canção Porque você faz cinema, composta com Joaquim de Andrade, ela aponta outra possibilidade sobre o motivo de fazer cinema «Para chatear os imbecis, para não ser aplaudido depois de seqüências dó de peito, para viver a beira do abismo, para correr o risco de ser desmascarado pelo grande público, para que conhecidos e desconhecidos se deliciem, (...) para ver e mostrar o nunca visto, o bem e o mal, o feio e o bonito, porque vi «Simão no deserto», para insultar os arrogantes e poderosos quando ficam como «cachorros dentro d'água» no escuro do cinema, para ser lesado em meus direitos autorais».
Assim, as diferenças entre cinema e televisão expressas na poesia da canção também parecem perspectivar o que foi falado acima, ou seja, dos diversos significados que as diferentes formas de produção e recepção de cada meio em suas especificidades permitem construir.
Mas vejamos como a questão especificamente da televisão aparece para o poeta cantor, Caetano Veloso, na letra da música Santa Clara, Padroeira da Televisão. Interessante situar que em resposta à pergunta se Santa Clara seria mesmo a padroeira da televisão, Caetano respondeu que ouviu falar e que talvez isso se devesse ao fato de Santa Clara ter visto «uma cena projetada na parede de seu quarto, a morte de São Francisco, e como a cena acontecia à distância, era a televisão...».
Santa Clara, padroeira da televisão
Que o menino de olho esperto saiba ver tudo
Entender certo o sinal certo se perto do encoberto
Falar certo desse perto e do distante porto aberto
Mas calar
Saber lançar-se num claro instante
Santa Clara, padroeira da televisão
Que a televisão não seja o inferno, interno, ermo
Um ver no excesso o eterno quase nada (quase nada)
Que a televisão não seja sempre vista
Como a montra condenada, a fenestra sinistra
Mas tomada pelo que ela é
De poesia
(...)
Saber calar, saber conduzir a oração
Possa o vídeo ser a cobra de outro éden
Porque a queda é uma conquista
E as miríades de imagens suicídio
Possa o vídeo ser o lago onde narciso
Seja um deus que saberá também
Ressuscitar
(...)
Lua Clara, trilha, sina
Brilha, ensina-me a te ver
Lua, lua, continua em mim
Luar, no ar, na tv
São Francisco
Interpretando essa canção à luz das semelhanças e diferenças entre a música e a poesia, Deheinzelin (1996) diz que a clarividencia é um dom de poetas e cancionistas que usando a voz tornam visível o invisível. Tal como nossa imaginação atua nos filmes, podemos imaginar que nessa espécie de oração em forma de canção, o poeta propoe tomar da televisão em cada claro instante o que ela tem de poesia, invertendo a visão habitual que alguns críticos tem sobre a passividade dos espectadores. Quando pede «que o menino esperto saiba ver tudo», pede o poder de celebrar a visibiliade total, mas como o olho absoluto é improvável, existe um menino de olho esperto, «que entende o sinal certo se perto do encoberto». Ou seja, algo que pode ser revelado pelo entendimento, pois a revelação completa traria a cegueira e não a visão. «Falar certo do perto distante de um ponto aberto» remete para um horizonte a ser descoberto, em que «calar pode ser saber lançar-se no claro instante» intercalando falas e silêncios, plenitudes e vazios, de imagens e sentidos entre pasado e futuro que se lança no instante do agora. «Que a televisão não seja o inferno» da emissão e recepção de imagens da degradação de mundos desencantados e que seu excesso de cores não resulte no branco «quase nada», mas que seja «tomada pelo que ela é de poesia». Nas histórias possiveis que o video-cobra possa contar de outro éden onde a queda pode ser conquista, o desejo é o de que a televisão possibilite outros conhecimentos e lugares de possiveis fulgurações e aberturas com certo grau de independencia das contingências. Enfim, «trilha, sina, brilha, ensina-me a te ver, continua em mim, no ar, na tv», revela o indício da necessidade de um guia legivel necessário para aprender os ensinamentos de quem fez e criou, guia que ilumina, que lança e que permite a necessária abertura de sentidos para essas e outras formas de imagens e imaginações que a televisão nos possibilita.
Assim, diante destas aproximações e distanciamentos entre televisão e cinema e suasdiferentes possibiliades de olhar, parece que caminhei em circulo e não em espiral, como pretendia, pois cheguei de onde parti: se filme é arte e mercadoria, por uma questão conceitual permanece sendo em qualquer meio, mas se filme é o todo da experiencia, mudando o contexto, muda a forma de com ele se relacionar, sendo, contraditoriamente, as duas coisas. Ou seja, sinto-me enriquecida, mas não suficientemente esclarecida no que ainda necessito ver. Os olhares dos teóricos me deram as tintas e os pincéis, mas a pintura ainda precisa ser feita. Os olhares das crianças me trouxeram a voz e a musicalidade que no teclado do computador tornaram-se histórias, criaram imagens e alçaram vôos próprios com palavras quefogem do controle do olhar de pesquisadora. Os olhares interpretativos da poesia me fizeram imaginar que «ver tudo enquadrado televisivo» pode ser apenas um jeito de ver e que «fazer cinema e mostrar o nunca visto, o bem e o mal, o feio e o bonito» pode ser outro. Mas que o desejo de que a televisão seja «tomada pelo que ela é de poesia» pode ser o alentoda arte que pode inspirar as mais diversas mediações educativas. Enfim, frente a questão inicialmente colocada, sinto-me ainda diante de um fluxo com uma pauta difusa e intermitente a espera da edição e montagem de um roteiro sem final definido e ainda por fazer. E que talvez por isso, o coloco em discussão. A pesquisa «Cinema e educação: a formação estético-cultural das crianças» que desenvolvo orientada pela Profª Gilka Girardello, faz parte do Curso de Doutorado em Educação na Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil), com Estágio no Exterior financiado pela CAPES, na Università Cattolicadel Sacro Cuore di Milano (Itália), sob co-orientação do Prof. Pier Cesare Rivoltella, a quem agradeço por tal possibilidade.
Comparato(1983) analisa o tempo de atenção diante de um livro, filme ou programa de televisão. No cinema seriam os primeiros vinte minutos; na televisão o tempo de atenção cai para apenas três minutos e num comercial, esse tempo seria de apenas sete segundos.
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