Experiências brasileiras com TVs comunitárias
Valter Filé |
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RESUMEN |
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Este texto pretende apresentar algumas experiências brasileiras de uso da linguagem audiovisual – TVs comunitárias, TVs de rua – a partir de dois projetos: a TV Maxambomba e a TV Pinel e seus ecossistemas comunicativos. A partir da minha inserção como membro de suas respectivas equipes, tenho buscado interlocuções entre os conhecimentos que estes trabalhos me propiciaram e as questões que rondam fazeres pedagógicos cotidianos de muitas escolas brasileiras. Questões que relacionam-se com as discussões sobre a televisão, os usos da linguagem audiovisual em práticas comunicacionais com pequenos grupos, a lida com as tensões das relações interculturais e das possibilidades de pensarmos sobre a produção de conhecimentos. A TV Maxambomba – 1985-2000 – atuou na região da Baixada Fluminense, zona periférica do Rio de Janeiro, considerada pela mídia comercial como zona pobre e violenta. A idéia inicial da TVM era de ajudar os moradores a discutirem seus problemas e, consequentemente, que pudessem organizarem-se em busca de seus direitos de cidadania. Com um telão sobre uma Kombi, percorria-se os diferentes bairros onde eram feitas exibições, ao anoitecer. Pretendia-se: provocar audiências públicas ajudando a recuperar os ajuntamentos populares que haviam sido reprimidos pela ditadura, recém finda; através da gravação de programas com os moradores dos bairros, introduzir outras imagens, na tela, questionando as imagens assépticas de um Brasil branco, de olhos claros e macho; ajudar a trabalhar a auto-estima de uma população fortemente vilipendiada que só aparecia na televisão em caso de tragédia e em todas as situações que pudessem ratifica-la como feia, violenta, como uma massa amorfa. A equação era simples: se a mídia tradicional mostrava as misérias daquele lugar, como generalização, nós, da TVM, mostrávamos os fazeres cotidianos das gentes - como mulheres de um determinado bairro faziam para resolver problemas de desemprego, criando uma cooperativa de costura e ao mesmo tempo criavam um espaço educativo-recreativo para os filhos; os artistas, os grupos culturais e as experiências de jovens na lida com seus problemas. Em 1995, a partir da experiência da TVM, fomos convidados pelo Ministério da Saúde para ajudarmos a pensar um projeto de uso do vídeo, num hospital psiquiátrico. A TV Pinel nasce em 1996 nos ventos da luta antimanicomial. Trabalhadores de saúde mental, familiares, loucos e vários setores do poder público, articulavam a reforma psiquiátrica, que entre outras pretensões, buscavam atacar as perversidades dos lucrativos negócios dos manicômios privados e o paradigma que sustentava a centralidade do saber médico, de tratamentos violentos e da exclusão física e simbólica. A Reforma, de saída, aspirava por novas interlocuções, a convocação de saberes interdisciplinares, do fechamentos dos manicômios e a busca de novas maneiras de relacionamentos com os sofrimentos psíquicos. Dentro do hospital Philippe Pinel, a TVP tem envolvido em suas atividades, usuários dos serviços, funcionários e técnicos. Materializa-se como um espaço de interação que se dá, não a partir das relações e dos papeis desempenhados por cada um dentro da instituição, mas pelas demandas de projetos de produção de vídeos. |
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ABSTRACT | ||||||
This text intends to present some Brazilian experiences of use of the audiovisual language - TVs communitarian, TVs of street - from two projects: the communicative TV Maxambomba and TV Pinel and its ecosystems. From my insertion as member of its respective teams, I have searched interlocutions between the knowledge that these works had propitiated me and the questions that make the rounds to make pedagogical daily of many Brazilian schools. Questions that become related with the quarrels on the television, the uses of the audiovisual language in practical comunicacionais with small groups, the chore with the tensions of the intercultural relations and the possibilities to think on the production of knowledge. |
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DESCRIPTORES/KEYWORDS | ||||||
Mídia comunitária, práticas comunicacionais, educação e produção de conhecimento. |
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A partir de dois projetos, a TV Maxambomba e a TV Pinel e seus ecossistemas comunicativo, este texto pretende apresentar algumas experiências brasileiras de uso da linguagem audiovisual – TVs comunitárias , TVs de rua. Como membro de suas respectivas equipes, tenho buscado interlocuções entre os conhecimentos que estes trabalhos me propiciaram e as questões que rondam fazeres pedagógicos cotidianos de muitas escolas brasileiras. Questões que relacionam-se com as discussões sobre a televisão, os usos da linguagem audiovisual em práticas comunicacionais com pequenos grupos, a lida com as tensões das relações interculturais e das possibilidades de pensarmos sobre a produção de conhecimentos. O primeiro esforço desta empreitada será o de tentar trabalhar sobre algumas noções/metáforas que estou usando aqui. A primeira delas, e talvez a mais complexa, é a de televisão,para os dois projetos em que estou envolvido. Tanto na TVM, quanto na TVP, quando dizemos estamos gravando para a TV Maxambomba ou este é um programa da TV Pinel,imediatamente vem a pergunta: e qual é o canal? Então, tínhamos/temos que dar uma explicação, nem sempre convincente. Tanto estes projetos, quanto inúmeros outros, no Brasil, se pretendem a identidade de televisão para introduzir alguns questionamentos às idéias de tevê já cristalizadas, naturalizadas pelas pessoas, de um modo geral. A idéia de televisão normalmente transita entre um aparelho que conecta a cena doméstica aos produtos simbólicos de uma emissora, reconhecida como um canal,com seus programas e programações. Desde esta singela definição de tevê, talvez possamos vislumbrar alguns elementos que fazem sua sustentação: a experiência de consumo, no espaço cotidiano das famílias; uma emissora que tem sua identidade mantida pela regularidade e uma grade de programação, como no caso da Rede Globo de televisão, que é a empresa que domina o mercado brasileiro, sua identidade está marcada pelas telenovelas - que se sucedem ano após ano - que regulam os horários de muitas pessoas, inclusive deslocando o horário das partidas de futebol que serão transmitidas, sempre depois da sua novela do horário nobre. Tanto que quando vai haver uma transmissão de futebol durante a semana, à noite, muitas pessoas ao serem perguntada pelo horário, responderão: - depois da novela. Ainda como parte desta relação do espaço doméstico com a tevê, a separação/isolamento entre o lugar de consumo e o lugar da produção. Sendo assim, com a televisão instalada no cotidiano das gentes, experimentar outras maneiras de fazer, assistir e pensar a tevê, me parece que são desejos fundamentais dos diversos projetos que se denominaram sob as mais diferentes formas – tevês comunitárias, tevês de rua e até uma experiência no norte do Brasil, na região amazônica, carinhosamente chamada de tevê de rio. Mesmo considerando as diferenças entre as experiências com linguagem audiovisual, o que seria experimentar outras maneiras de fazer, assistir e pensar a tevê? Esta questão demanda uma reflexão um tanto mais profunda, o que não será possível neste trabalho, mas pretendo, pelo menos, levantar alguns pontos que não encerram a questão e, ainda, abrem outras possibilidades para continuarmos a pensar sobre o assunto. Estas experiências – que por suas diferenças vou nomea-las de práticas comunicacionais baseadas na linguagem audiovisual – tentaram/tantam – conscientemente ou não - deslocamentos em alguns pontos-chave nas instancias estabelecidas pela industria cultural, em suas relações: um) vincular o ecossistema comunicativo – pessoas e processos de produção e exibição – com questões ligadas ao campo da cidadania; dois) os sujeitos destas práticas comunicacionais eram/são convidados a romper o isolamento entre produção e recepção, ativando uma circularidade a estas etapas que tradicionalmente são estanques; e, três) se a televisão comercial se pretende como uma cultura de massa (mesmo a tevê fechada, paga, que se caracteriza, não por deixar de ser de massa, simplesmente, mas pela busca de um segmento de mercado que lhes permite aprimorar estratégias de sedução ao consumo, de uma público mais potencial e seleto) nossa tentativa era encontrar possibilidades de dar conta das experiências cotidianas, de pequenos grupos; e, também, propor uma recepção, uma assitência coletiva, recuperando o público, no espaço público das praças, das ruas, nas dependencias de hospitais e escolas. Seria propor uma alternativa que invertesse a experiência do consumo dos modelos broadcasting: ao invés da vivência da coisa pública dentro de casa, a partir da tevê, a idéia seria fazerassistir televisão, coletivamente, tentando enfatizar esta re-elaboração da esfera pública. Certamente que um discurso generalizante dos diferentes projetos me expõe ao risco, às injustiças com diversas lógicas e motivações, principalmente se tenho uma filiação aos estudos do cotidiano. Tal generalização, ao mesmo tempo que busca ampliar o horizonte impede o cuidado necessário para pensarmos como cada atuação considerou as questões que tenho tratado. Que significados cada uma das experiências deu para noções como participação coletiva, espaço público, consumo, informação e produção de conhecimento, para pensarmos sobre formas de comunicação mais democráticas? Vou, mais adiante, tentar voltar a estes e outros lugares,de forma mais encarnada, quando estiver falando da TV Maxambomba e da TV Pinel. Antes, porém, parece-me oportuno situar o contexto em que surgem a maioria destas práticas comunicacionais, pelo menos no Brasil e os contextos de seus embates político-epistemológicos. |
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1. Cenários... |
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A partir dos anos oitenta, do século passado, as chamadas novas tecnologias, mais especificamente os aparelhos de televisão e o videocassete, popularizam-se. A importância dada a estes novos equipamentos, pelo menos por parte de algumas autoridades, pode ser constatada por um programa de educação, que incorporava aos equipamentos de centenas de escolas, um kit que continha antena parabólica, aparelhos de tevê e videoscassete. Além dos equipamentos, havia uma equipe encarregada de montagem de acervo, treinamento de professores para o uso dos aparelhos e um grupo que pensava a produção de alguns programas. A ditadura que o país havia atravessado a partir do golpe militar de 19964 havia terminado, mas os efeitos de sua vigência eram ainda sentidos muito concretamente. No campo das telecomunicações, o governo militar havia estruturado uma rede que integrava praticamente todo o país, permitindo generosamente à Rede Globo a hegemonia de suas imagens e áudios. Sua indústria cultural simbólica prosperava na contramão das legislações democráticas do mundo, onde não se permitia (até então) que apenas uma empresa dominasse mídia escrita, radiofônica e televisiva (além de editora, indústria fonográfica, etc) nas proporções da atuação da empresa em questão e de outras, já que as empresas de comunicação do país estavam nas mãos de cinco famílias. Os movimentos sociais denunciavam o abuso, pediam o fim do monopólio e uma reforma agrária no ar. Criou-se, então, o Fórum Nacional de Democratização da Comunicação, com representação de dezenas de entidades da sociedade civil organizada, e que vai encabeçar uma ferrenha batalha no Congresso Nacional, enquanto se propunha, também, ao estimulo de formas mais democráticas de comunicação. A comunicação alternativa, surge no contexto latino-americano, sobretudo, pela extrema desigualdade, opressão e injustiça social existentes e as possibilidades de redemocratização, depois de anos de ditaduras. Nasce articulada com os movimentos populares que, diante dessas condições, esforçam-se para estabelecer mecanismos de mobilização: em greves e manifestações, no fortalecimento de associações, comunidades eclesiais de base, sindicatos e outros movimentos. O barateamento dos equipamentos de produção e exibição de vídeo vai ser fundamental para o surgimento de diversas experiências. No Brasil, apenas como ilustração citarei algumas: TV Olho, Duque de Caxias, RJ; TV Anhambi, Prefeitura da Cidade de São Paulo; Ibase Vídeo, RJ; Fase (que tinha seu setor de vídeo); Iser vídeo, RJ; TV Sala de Espera, Belo Horizonte; TV Mocoronga, Santarém, PA; Bem-tv, Niterói, RJ; Rede Pixurum, composto por vários projetos de comunicação em áreas rurais da Região Sul; TV dos Trabalhadores - TVT, iniciativa ligada ao Centro de Estudos do Cajamar, SP; Necc/Facha, RJ; e muitos outros. Em 1984, diante da efervescência das experiências, é fundada a Associação Brasileira de Vídeo no Movimento Popular – ABVPM, reunindo dezenas de grupos de produtores, pesquisadores, estudantes, educadores e gente de outras organizações sociais. Deste movimento,dois projetos se tornaram referência: A TV Viva, fundada pelo Centro Luiz Freire, em 1982, na região nordeste (mais especificamente em Olinda, Pernambuco), e a TV Maxambomba, fundada pelo Centro de Criação de Imagem Popular, em 1986, no Rio de Janeiro. Os dois projetos tinham em comum a longevidade das suas atividades e o fato de serem tevês de rua, com exibições regulares, com equipes remuneradas (já que muitos projetos contavam com voluntários), concretizadas a partir da produção e apresentação de programas feitos nas comunidades das periferias das cidades em que atuavam. As exibições eram feitas nas praças e ruas, em telões sobre kombis, às vezes, transformando a vida cotidiana dos lugares, em um espetáculo, chamado por alguns pesquisadores de circo eletrônico,pois, além do videotape, outras atividades aconteciam, como apresentações de grupos da comunidade e debates ao vivo. |
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2. O que andava pelas cabeças e pelas bocas... |
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Os estudos da comunicação estavam muito voltados para a televisão, por sua força e importância, e o centro das discussões estava basicamente na economia da produção e no poder das mensagens. O discurso hegemônico – tanto de pesquisadores, como de militantes – acreditava que na recepção - o outro lado da produção – como um lugar isolado onde habitava uma população carente,sem cultura e totalmente manipulável.Frente a tal poder era preciso empreender ações, e, por quase toda a América Latina, que vivia situação semelhante e com uma população pouco escolarizada, surgiram projetos que tinham como proposta aumentar as imunidades dos receptores. Alfabetização audiovisual,leitura crítica dos meios,pedagogia da imagem,pedagogia dos meios,educação para a comunicação eram motes que surgiam, em várias partes. Os movimentos sociais que atuavam pela redemocratização do país, incluíam, em suas pautas, a luta contra o poder da televisão. No Brasil, onde esse poder era encarnado pela Rede Globo, grande parte da esquerda entendia que essa empresa (e outras) tinha um poder acima das possibilidades de uma população pobre, indefesa, que como uma massa amorfa,estava à mercê do jugo da mídia. O professor Jesus Martin-Barbero, avalia que, [o que] verdadeiramente interessou a maioria das organizações de esquerda na vida das classes populares foram as ações de reivindicação e as associações que organizaram essa luta. Todo o resto – as práticas que constituem o viver cotidiano, juntamente com aquelas que dão cabo da subsistência e dão sentido à vida – foi considerado mais como obstáculo à tomada de consciência do que como ação politicamente conseqüente (1997, p.288-289). Tanto é assim, que muitos dos projetos alternativos de comunicação, tinham um caráter iluminista, ou seja, pretendiam que, ao levar informação ao povo – na maior parte das vezes, menosprezando os seus conhecimentos - esse povo se tornaria capaz de ganhar consciência e abrir um largo campo na luta política, muitas vezes, pautada por esta vanguarda. Martin-Barbero, vem, desde então, levantando algumas questões que têm ajudado a pensar sobre as mídias de massa, comunicação e cultura, estabelecendo estudos a partir da realidade latino-americana (já que, a maioria dos estudos mais importantes vieram sempre dos Estados Unidos ou da Europa), a partir da suspeita de que poderia haver muito mais coisas do que simples passividade, no campo da recepção. O autor lança um novo olhar para aqueles que simplesmente eram chamados de povo,redimensionando sua importância a partir de suas experiências, usos e consumos. Jesus Martin-Barbero oferece outros aportes para os estudos do fenômeno da recepção a partir do que chamou de teoria das mediações, deslocando as reflexões dos meios às mediações. As mediações constituem-se em articulações entre matrizes culturais distintas, por exemplo, entre tradições e modernidade, entre rural e urbano, entre popular e massivo, também em articulações entre temporalidades sociais diversas, isto é, entre o tempo do cotidiano, o tempo do capital, o tempo da vida e o tempo do relato. Portanto, é através das mediações que podemos entender a interação entre produção e recepção ou entre as lógicas do sistema produtivo e dos usos, ou seja, o que se produz nos meios não responde unicamente ao sistema industrial e a lógica comercial mas, também, à demandas dos receptores, ressemantizadas pelo discurso hegemônico. Enfim, são as instituições, as organizações sociais, os sujeitos e suas matrizes culturais, que configuram as mediações (Escosteguy, in Martins, 1996, p.85). Abriam-se então, outras possibilidades para pensarmos sobre a questão da comunicação, estimuladas também por Michel de Certeau e Nestor Canclini. |
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3. Desafios... |
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Estudar os movimentos e as condições de possibilidades da TV Maxambomba e da TV Pinel, como já havia anunciado, é uma oportunidade tramar com diferentes fios, de diferentes redes, saberes que nos ajudem com as coisas da educação, das relações interculturais, nos encontros na diferença para pensarmos sobre os jogos de alteridade das práticas pedagógicas cotidianas. Aportes para pensarmos nas dimensões teórico-metodológicas de pesquisas que se propõem como nós-entroncamentos que interpenetram os chamados campos da comunicação e da educação. Para o enfrentamento dos meus desafios, tenho identificado-me com os estudos do cotidiano. O que seriam os estudos do cotidiano? A primeira coisa que me parece importante levantar é sobre o entendimento que se tem de cotidiano. Para muitos é o lugar onde nada acontece de importante, ou por outra, lugar das rotinas e do tédio que, às vezes, só é quebrado por uma briga de família num almoço de domingo. O cotidiano em que acreditamos nós - nós de uma rede – é aquele tempo-espaço onde acontecem as coisas para além da repetição e reprodução de uma estrutura social. Segundo Certeau (1994), é o espaço/tempo das singularidades, dos sujeitos reais e suas práticas. O estudo deste cotidiano nos leva a um conhecimento que não se contenta com as generalizações e as estatísticas. Para Certeau, as generalizações são como as ciências que dizem do homem, em geral, sem dizer muito de homens em suas batalhas do dia-a-dia, nas relações com outros, dos acontecimentos surpreendentes do cotidiano. As estatísticas, segundo o autor, só encontram o homogêneo. Ela reproduz o sistema ao qual pertence e deixa fora do seu campo a proliferação das histórias e operações heterogêneas que compõem os patchworks do cotidiano (op.cit.p.46). Estudar o/com/no cotidiano é mergulhar em toda a sua pluralidade, sua complexidade e a sua irredutibilidade, pois que não é linear, nem previsível. Para se estudar o cotidiano temos que estar nele, ao contrário do que alguns pretendem, principalmente quando inspirados pela ciência moderna: distanciamento, totalidade e reprodutibilidade daquilo que se supõe como realidade generalizada e objetiva. Aliados ao cotidiano estarão outras crenças que me fazem ver coisas nas quais acredito, como no diz Von foerster, mas admitindo a possibilidade dos pontos cegos de que também são feitas minhas trajetórias-criações. Crenças em que o conhecimento é tecido em rede e não transmitido,comunicado por instâncias admitidas pela metáfora da árvore (Lefebvre, 1983)e seus percursos e hierarquizações definitivas. |
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4. TV Maxambomba, ligada na Baixada! |
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A TV Maxambomba – 1985-2000 – atuou na região da Baixada Fluminense, zona periférica do Rio de Janeiro, considerada pela mídia comercial, apenas como zona pobre e violenta. A TVM teve duas fases bastantes distintas. Inicialmente a idéia era de ajudar os moradores a discutirem seus problemas para que pudessem organizarem-se em busca de seus direitos de cidadania. |
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4.1 Tempos heróicos... |
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Nesta primeira fase, as ações estavam intimamente ligadas a duas organizações locais que se interpenetravam e, algumas vezes, confundiam-se: as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs - e os Movimentos Amigos de Bairro – MAB. Neste formato a TVM tinha uma equipe que, majoritariamente, não vivia na região. Os programas produzidos e as exibições eram direcionados para as associações de moradores, tentando contribuir com os esforços de mobilização por direitos civis, tentando localizar-se, preferencialmente, no espaço das manifestações e enfrentamentos com poder público. Estes movimentos tinham um forte vínculo com a igreja católica, o trânsito das pessoas de outras orientações religiosas, em seus espaços, ficava comprometida, consequentemente, sua representatividade. E aos que pertenciam a esta suposta comunidade – transcendendo ou não a filiação religiosa – o comparecimento às exibições dos vídeos, era irregular (como irregular também era a nossa freqüência) e muitas vezes conseguida as custas de alguma negociação que garantisse público. Com muita dificuldade, ainda hoje, temos dado voltas para pensar sobre aquela época e seus acontecimentos. Se não conseguimos desvendar muita coisa, pelo menos, temos levantado outras tantas, para tentar compreender melhor idéias como, espaço público, participação coletiva e comunicação democrática. Tentando superar o mito que muitas vezes sustenta muitas ações populares: o fato de que só a intenção de fazer o bem,em si, já basta; se somos populares temos mais intimidade com as gentes e portanto, chegamos mais perto de uma verdade privilegiada. Constatamos dolorosamente que a adesão da maioria da população aos programas da Rede Globo, ratifica sua popularidade. A desconsideração do imaginário das pessoas e daquilo que vai além das lutas ou resiste a elas, as práticas culturais e as redes de significados, a despeito das pautas oficiais, das lideranças. A redução dos problemas humanos à falta,carência de bens materiais, serviços público, apenas, sem buscar as maneiras como cada grupo vive estas situações que estão imbricadas em outras dimensões humanas. |
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4.2 Pelas encruzilhadas... |
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Desconcertados, depois de três anos, partimos para outra fase. Se antes estávamos ligados aos grupos organizados, tanto pela pauta, quanto pelos locais de exibição, agora, iríamos correr riscos. Como a TV Viva, de Olinda, já fazia, fomos para a rua com um telão sobre uma Kombi. Percorriamos os diferentes bairros onde eram feitas exibições, ao anoitecer. Sem garantias de público, sem a garantia de nenhuma autoridade, teríamos que aprender com nossos erros e fazer novas apostas. Saímos da militância e partimos para considerar a força da linguagem audiovisual, da comunicação, apostando, não mais em problemas, apenas, mas, nas potencialidades da pessoas da região. Uma tentativa, talvez, de conectar histórias pessoais ao reconhecimento coletivo, trabalhando com as coisas positivas de uma população fortemente vilipendiada que só aparecia na televisão em caso de tragédia e em todas as situações que pudessem ratifica-la como feia, violenta, como uma massa amorfa. A equação era simples: se a mídia tradicional mostrava as misérias daquele lugar, como generalização, nós, da TVM, mostrávamos os fazeres cotidianos das gentes - como mulheres de um determinado bairro faziam para resolver problemas de desemprego, criando uma cooperativa de costura e ao mesmo tempo criavam um espaço educativo-recreativo para os filhos; os artistas, os grupos culturais e as experiências de jovens na lida com seus problemas. Admitindo a dificuldade de dar conta de todos os aspectos desta etapa da vida da TVM, vou considerar duas atuações como exemplares, para pensarmos sobre as questões que já foram apontadas. A experiência com os repórteres de bairro e o projeto botando a mão na mídia,envolvendo alunos e professores da rede pública da região. |
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4.2.1 Os repórteres de bairro | ||||||
Estar perambulando pelas ruas, sem o consetimento das associações de moradores, não significava um descompromisso com os bairros que frequentávamos, ao contrário. Nesta etapa, tínhamos como ponto de partida o aprofundamento das relações com pessoas, grupos, organizações, enfim, com o que pudéssemos. Produzíamos programas sobre os bairros, ainda que agora sobre temas como trabalho, as culturas juvenis, gravidez na adolescência, compositores de samba e outros assuntos. Estes programas, agora, apostavam na linguagem audiovisual, experimentando formatos ficcionais – onde mesclavamos jovens atores com moradores, debates gravados que continuavam ao vivo, etc. Ainda assim, sentíamos que precisávamos aprofundar mais esta relação. Foi aí que resolvemos convocar os moradores que estivessem interessados em usar o vídeo para falar de suas questões, seus temas. Ao invés de fazermos cursos teóricos de vídeo, primeiro levantávamos os temas de interesse dos que haviam se disponibilizado e discutíamos como estes temas poderiam ser tratados e que interesses teriam para os outros que iram assitir. Assim, as negociações sobre os programas iam criando uma maneira dos moradores acercarem-se das maneiras de realiza-los. Se íamos gravar uma ficção a equipe era divida a partir das necessidades técnicas assumidas – os que fariam câmera, os que cuidariam do som, os que cuidariam do roteiro, da produção, do elenco e as formas possíveis de exibição – e se faziam treinamentos para que cada grupo tivesse a formação mínima necessária para a função que haviam escolhido. Ainda que os resultados, do ponto de vista da qualidade técnica, não fossem, em sua maioria, fantásticos, as movimentações em torno da produção e da exibição, ganhavam outra dimensão. Entre os objetivos estava o de que moradores desta região se apropriassem da linguagem audiovisual para expressarem-se e, ao mesmo tempo, podessem perceber os subtextos na produção das imagens/sons. A Produção e a exibição não existem como etapas estanques, mas integradas a um movimento circular. A produção não pode ser pensada desvinculada das formas de como se dará a exibição, e nela é preciso que continue o trabalho de modo participativo, ou seja, os presentes precisam ter espaço para se expressarem, se manifestarem sobre o que viram/vêem, dando uma nova dimensão do que foi apresentado, reelaborando o texto audiovisual, re-negociando sentidos. Através da câmera aberta,instala-se uma nova forma de participação que as tevês de rua utilizam na hora de exibição dos vídeos, ou seja, ela é o local onde microfones e câmeras estarão à disposição dos presentes, e estas imagens/sons estarão sendo projetadas, exibidas simultaneamente para todos, fazendo a ligação do vídeo-tape com o ao vivo. A exibição, a partir das noções de tevê comunitária, passa a ser entendida enquanto o lugar da entrada de novos elementos (simbólicos ou não) no processo de comunicação, invertendo a lógica da audiência das tevês convencionais, já que, para tais mídias, o espaço doméstico é o local por excelência de vivência do público, influenciador dos processos de socialização. Já nas tevês comunitárias, esta audiência se dá de forma coletiva e preferencialmente em locais públicos, valorizando uma intersubjetividade produzida pelas imagens/sons, e pelas manifestações das várias subjetividades dos que estão presentes, sobre tais produtos simbólicos. As maneiras de tecer e a trama são elementos determinantes da linguagem e que nos dão pistas de como são trabalhados os conhecimentos. Estes movimentos precisam estar registrados pelas câmeras e microfones, como making of, podendo, no entanto, vir a se tornar parte do vídeo-produto,ou seja, o vídeo que era intenção do grupo produzir/exibir originariamente. Trabalhamos em 8 bairros e as pessoas envolvidas – muitos adolescentes – tinham perfis diferentes, mas todas ultrapassaram os interesses individuais e sairam em busca de temas que pudéssem alimentar as conversas públicas das diferentes redes tecidas pelas gentes do lugar. |
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4.2. Alunos de escolas públicas botando a mão na mídia... |
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Em muitos locais além de lidar com os moradores, fomos até as escolas. Inicialmente, levando nosso acervo e convocando alunos para debates sobre os temas e as meneiras de aborda-los. Funcionava como um grupo focal que avaliava nossas produções e indicava outras possibilidades. Na conversa com professores sempre havia pedidos de vídeos que tratassem de temas que eles teriam que trabalhar – drogras, saúde dos adolescentes, etc. Muitos professores, certos do poder de sedução do vídeo acreditavam que os alunos conseguiriam aprender melhor os conteúdos se estes fossem passados por tal mídia. Estes apelos tentam apropriar-se da linguagem audiovisual para submete-la a lógicas comprometidas com racionalidades escriturísticas, que orientam e ordenam a maioria das ações das escolas e os movimentos ensino-aprendizagem – privilígio e dicotomia entre mente e corpo, a prevalência verbal sobre coisas indizíveis, mas não inexpressáveis, etc.. Estas lógicas, baseadas na força intrínseca das mensagens, dos conhecimentos-conteúdos consagrados como os que se deve formar os educandos, independentemente de quem sejam, de suas histórias, suas práticas culturais, suas experiências. De todas as maneira, nós da TVM não poderíamos deixar de dar uma resposta àqueles corajosos e bem intencionados apelos. Resolvemos experimentar formas de compreendermos melhor os alunos. Como eles posicionam-se em diferentes situações, como se viam, as pistas de como vão tramando suas redes de conhecimentos, acreditando que tais pistas pudessem dialogar com o conteúdo programático de várias disciplinas. Na primeira proposta, contactamos duas escolas de ensino médio – distantes uma da outra, 40 km - e sugerimos um debate entre os alunos. Chegamos na primeira escola e perguntamos sobre o que eles gostariam de conversar. Depois de alguns risos e divagações uma aluna nos disse que gostaria de contar uma história desagradável, passada com ela: - Era uma feira de ciências e eu e algumas meninas da turma, vendíamos camisinha para arrecadar fundos para nossa formatura. O problema é que a maioria dos garotos tiveram uma atitude horrível, quando nos viram com as camisinhas. Eles diziam que se alguma menina anda com camisinha é porque não é mais virgem, ou querem deixar de ser, ou então são vadias. Fizeram um tramendo alarde e nós, que estávamos vendendo, ficamos muito desconcertada com as piadinhas deles. Dizia e olhava para os meninos que riam e, alguns, tantavam disfarçar o mal-estar. Não é necessário dizer que daí em diante armou-se uma tremenda discussão, que desde o começo e com a autorização de todos, estava sendo gravada, sem a presença da professora. A metodologia do trabalho foi a seguinte: em encontros semanais, gravamos este material, editamos e retornamos à mesma escola, para que eles opinassem sobre suas falas, a edição e depois fizessem perguntas para os alunos da outra escola, em relação ao que haviam discutido. Editamos e fomos com a fita para outra escola. Gravávamos suas reações ao debate da outra escola e em seguida eles discutiam sobre o que haviam visto, respondiam a perguntas feitas e faziam outras. Editávamos e voltávamos, repetindo o processo da outra escola. Foram alguns encontros, sempre um vai e vem em que estava em jogo, a desvelação de discursos, comportamentos, opiniões contraditórias e principalmente o trabalho com a auto-imagem (Ferrés, 1996). Certamente o tema circulou entre sexo, preconceitos, machismo, violência e pistas das relações de cada um com os temas. Deixamos para os professores das escolas um material que certamente não tinha uma mensagem final sobre os temas envolvidos, mas, certamente, sinais de suas práticas culturais, de suas crenças, angústias e muitos outros elementos que contribuem para um estudo da condições epistemológicas do grupo. Deixamos vídeos em que tema e conteúdos foram tratados, mas de forma encarnada, com todas as dores e belezas do esforço que é o aparecimento no espaço público, que vai constituindo-se a medida em que um se vê presente, aí. Trabalhamos de outras maneiras, com outras escolas, envolvendo também alunos e professores sobre negociação de sentidos para aquilo que se apresenta objetivamente como realidade – os problemas da escola, visto por cada um e cada grupo, e outros temas, mas que não cabe aqui estender-me mais. |
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5. TV Pinel: por liberdade, democracia, saúde e arte... |
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Em 1995, a partir da experiência da TVM, fomos convidados pelo Ministério da Saúde para ajudarmos a pensar um projeto de uso do vídeo, num hospital psiquiátrico. A TV Pinel nasce em 1996 nos ventos da luta antimanicomial. Trabalhadores de saúde mental, familiares, loucos e vários setores do poder público, articulavam a reforma psiquiátrica, que entre outras pretensões, buscavam atacar as perversidades dos lucrativos negócios dos manicômios privados e o paradigma que sustentava a centralidade do saber médico, de tratamentos violentos e da exclusão física e simbólica. A Reforma, de saída, aspirava por novas interlocuções, a convocação de saberes interdisciplinares, do fechamentos dos manicômios e a busca de novas maneiras de relação com os sofrimentos psíquicos. Dentro do hospital Philippe Pinel a TVP tem envolvido em suas atividades, usuários dos serviços, funcionários e técnicos. Materializa-se como um espaço de interação que se dá, não a partir das relações e dos papeis desempenhados por cada um dentro da instituição, mas pelas demandas de projetos de expressão via linguagem audiovisual. |
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5.1. Mudando a imagem da loucura |
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Numa sala do hospital-dia , os que buscavam atendimento médico, psicologos e os membros da equipe da tevê, encontravam-se pela primeira vez e pairava no ar um indisfarçável mal estar. Sem saber bem como começar, resolvemos provocar nossas diferenças e deixar o acaso servir de guia. Pusemos uma câmera, cabeada a um monitor de tevê e dissemos que poderíamos começar quando alguém quisesse fazer algo. Um usuário pegou o microfone (e uma pessa da equipe técnica pegou a câmera) e começou a fazer entrevistas com as pessoas que estavam presentes. Outros, em seguida, pegavam o microfone e falavam coisas que,mais tarde, virariam slogans da TVP, como: Não jogue fora sua loucura, ela é real (Joe Romano). Entre estes ditos, uma mulher aproxima-se (a Beth) e pergunta se poderia contar uma piada. Olhando para a câmera, ela manda, aquilo que para mim foi de um impacto profundo, tanto sobre os que estavam presentes, quanto para o futuro daTVP pois, de forma muito simples, nos dava uma grande dimensão das implicações da saúde mental. Ela faz a seguinte pergunta: - Vocês sabem o que é que tem debaixo do tapete de um hospício? Um silêncio profundo dominou a sala, e ela, sorrindo, arrematou: - É louco varrrido, entendeu! Assim começou um trabalho que vai fazer dez anos. Um trabalho onde a linguagem audiovisual tenta trabalhar uma nova imagem da loucura, tentando tira-la do espaço privado das famílias, dos hospitais para que suas questões – que se dão em iteração com a sociedade, com outros, pois ninguém enlouquece/vive sozinho - para invadir e ressemantizar o espaço público. Nos processos de produção a linguagem do vídeo não é central. Ela e todos que estamos envolvidos estamos sendo questionados pela diferença – não a diferença localizada em um, mas aquilo que atravessa as relações. Neste sentido a loucura interrompe instâncias técnicas como continuidade, obediência a roteiros e a negociação dos projetos coletivos insiste em nos mostrar que a diferença não pode ser confundida com algo que é propriedade de um. Que diferença não signifique desigualdade. A TV Pinel tem inspirado-me a evidenciar nos estudos de comunicação, além da noção central de entendimento das mensagens,também a de não-entendimento. Não para elimina-lo, simplesmente ou para adora-lo, mas como indício das limitações e das impossibilidades, da irredutibilidades e dos riscos que corremos em comunicação. Quando não refletimos que a busca de entendimento pode, também, significar a trasformação do outro em mesmos. Tenho admitido a comunicação como encontro na diferença e tudo que isto acarreta a projetos que trabalham a existência de outros como verdadeiros outros, ou de outros como respositários de nós mesmos. Certamente que os acontecimentos da TVP, em si, dariam um artigo e para este, consciente das lacunas, contento-me em parar por aqui e, quem sabe, em outra oportunidade, retornar a tais acontecimentos e práticas. |
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Referencias |
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CERTAU, M. (1994): A Invenção do cotidiano – artes de fazer. Petrópolis, Vozes. |
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Valter Filé, trabalha no Laboratório Educação e Imagem da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil). É consultor em educação e comunicação da TV Pinel e pesquisa as memórias do samba carioca, através das historias dos compositores. (valterfilé@yahoo.com.br). |
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