El papel del lenguaje televisivo en la constitución del lector contemporáneo
The role of television in the constitution of contemporary readers


Maria Luiza Magalhães Bastos Oswald
Rio de Janeiro (Brasil)

     
             
             
     

RESUMEN

     
     

El presente trabajo trae el análisis de las primeras entrevistas realizadas en el ámbito de una investigación institucional en curso interesada en investigar los sentidos/lecturas que niños y jóvenes realizan acerca de los productos de la cultura pop japonesa –mangás (historias en cuadritos), animes (dibujos animados) e videojuegos– basada en la orientación de los Estudios Culturales latinoamericanos (Jesús Martín-Barbero, Néstor García Canclini, Guillermo Orozco Gomes, entre otros autores). Ellos proponen que la recepción de los productos mediáticos sea analizada a partir de un desplazamiento teórico-metodológico que, reorientando el foco de los medios/mensaje para las mediaciones, permite identificar los receptores no como «dóciles audiencias», sino como productores activos de sentidos. Se pretende, con eso, intentar contribuir para la superación de la tensión entre la escuela y las culturas infantil y juvenil, tensión que tiene como uno de sus pilares el conflicto entre la cultura letrada y la cultura de la imagen. El estudio, que supone la opción por un abordaje cualitativo de carácter etnográfico, viene siendo realizado a través de entrevistas semi-estructuradas individuales con consumidores del trípode de la poderosa industria de entretenimiento nipónica, que se viene constituyendo como fenómeno mundial de comunicación de masa. Los discursos de los primeros entrevistados –cuatro jóvenes fanáticos de animes y mangas, cuya edad oscila entre 17 y 22 años– destacaron la influencia que el lenguaje de la TV ejerce sobre el extrañamiento que mantiene con el texto impreso tal como él se organiza en el libro. No obstante, la presencia en lo cotidiano de esos sujetos de un cúmulo de estímulos sonoros y visuales, no es raro depararnos con la existencia de una crisis de lectura que afecta niños y jóvenes, influenciando su desempeño en la escuela. Delante de los relatos, el grupo de investigación se formula algunas cuestiones: ¿la alusión a la crisis no sería, en el fondo, una incapacidad de las generaciones que fueron educadas y escolarizadas en los moldes de la cultura letrada?; entender que «el pretencioso gesto universal del libro» (W. Benjamin) ya no resuena entre las nuevas generaciones que ya nacieron bajo el impacto que la tecnología del sonido y de la imagen ejercen sobre la escritura? No sería, entonces, posible suponer que, si hay una crisis de la lectura, ¿es por las generaciones pasadas que está sendo vivenciada? Frente a esto, ¿no sería más adecuado, en vez de quedarnos repitiendo que existe una crisis de lectura que afecta la escolarización de niños y jóvenes y de permanecer buscando soluciones milagrosas para ese conflicto, asumir que estamos delante no de una crisis, sino de un contexto histórico del cual precisamos aproximarnos para no perder el tren de la historia? Esas fueron algunas de las preguntas que el examen de las cuatro primeras entrevistas con los jóvenes permitió sacar a luz de los fundamentos de los Estudios Culturales latinoamericanos, y es sobre ellas que ese texto se vuelca, no con la intención de responderlas, sino con el objetivo de constituirlas como un mapa que puede revelarnos caminos «para pasar de las respuestas que fracasaron a las preguntas que renuevan las ciencias sociales y las políticas libertadoras» (Néstor Canclini).

     
      ABSTRACT      
      This paper intends to show, based on the contributions of Latin American Cultural Studies, that the difficulty children and young people have with the organization of written texts, such as that found in books, is determined by the impact that the technology of images exercises over the ways in which they learn to read the world. An analysis of the first interviews with young people, conducted as part of an institutional project in progress, point to the role played by the language of television cartoons in their development as readers.      
      DESCRIPTORES/KEYWORDS      
     

Lenguaje de la televisión, recepción, prácticas de lectura.
Language of television, reception, reading practices.

 

     
     

O papel da linguagem televisiva na constituição do leitor contemporâneo
Guarda-Livros Juramentado

[...] A escrita que no livro impresso havia encontrado um asilo onde levava sua existência autônoma, é inexoravelmente arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutais heteronomias do caos econômico. Essa é a rigorosa escola de sua nova forma. Se há séculos ela havia gradualmente começado a deitar-se, da inscrição ereta tornou-se manuscrito repousando oblíquo sobre escrivaninhas, para afinal acamar-se na impressão, ela começa agora, com a mesma lentidão, a erguer-se novamente do chão. Já o jornal é lido mais a prumo que na horizontal, filme e reclames forçam a escrita a submeter-se de todo à ditatorial verticalidade. E, antes que um contemporâneo chegue a abrir um livro, caiu sobre seus olhos um tão denso turbilhão de letras cambiantes, coloridas, conflitantes, que as chances de sua penetração na arcaica quietude do livro se tornaram mínimas. Nuvens de gafanhotos de escritura, que já hoje obscurecem o céu do pretenso espírito para os habitantes das grandes cidades, se tornarão mais densas a cada ano seguinte ( Walter Benjamin).

O fragmento Guarda-Livros Juramentado (Benjamin, 1987: 27-8) faz parte do livro Rua de Mão Única, escrito por W. Benjamin entre 1925 e 1928. Nesta obra o autor se dispõe a conhecer e avaliar as funções da escrita na metrópole moderna, explorando a escrita em sua dimensão histórica plena (Bolle, 1994).

Trata-se de uma representação da metrópole moderna, assim como ela se ergue diariamente diante de seus habitantes: uma imensa aglomeração de textos: placas de trânsito, outdoors, sinais, letreiros, tabuletas, informações, anúncios, cartazes, folhetos, manchetes, luminosos – uma gigantesca constelação de escrita (Bolle, 1994: 273).

De acordo com Bolle (1994), como crítico e escritor, o que Benjamin pretendia com essa representação era diagnosticar os abalos que a escrita da cidade havia provocado na cultura letrada, centrada no livro. E era dialeticamente que ele via esse conflito, considerando que o escritor não deve fechar-se dentro de posições tradicionais, mas estar aberto para [...] a reaprendizagem do seu ofício, o que se dá no confronto com as novas modalidades da escrita. (p.275-6).

Quase oitenta anos nos separam do momento analisado por Walter Benjamin, que já apontava para a influência da ditatorial verticalidade do jornal, do filme, dos reclames no declínio do interesse pelo livro. Não obstante esse cenário flagrado por Benjamin na década de 30 do século XX, que se intensifica com a introdução em nosso cotidiano, em velocidade surpreendente, de um turbilhão de estímulos sonoros e visuais, não é raro nos defrontarmos com a idéia de que existe uma crise de leitura que afeta crianças e jovens, influenciando seu desempenho na escola.

Se o termo crise supõe a manifestação de algo que, em momento posterior, pode ser superado, seria adequado chamar de crise a relação de estranhamento que crianças e jovens vêm mantendo hoje com o texto impresso tal como ele se organiza no livro?

Seria demais supor que a alusão à crise é, no fundo, uma incapacidade das gerações que foram educadas e escolarizadas nos moldes da cultura letrada de entender que o pretencioso gesto universal do livro (Benjamin, 1987: 11) já não se impõe para as novas gerações que já nasceram sob o impacto que a tecnologia da imagem exerce sobre a leitura? Não seria, então, possível supor que, se há uma crise da leitura, é pelas gerações mais velhas que ela está sendo vivenciada?

Procuramos, e precisamos continuar procurando, as causas do mal estar que a leitura provoca em crianças e jovens nos métodos de alfabetização, nas cartilhas e livros didáticos, nas práticas pedagógicas tradicionais, nas estratégias inadequadas do ensino da literatura etc. Mas não seria providencial atentarmos também para a questão fundamental que á a presença frequente e progressiva da imagem técnica promovendo formas contemporâneas de leitura? A aproximação com jovens tem mostrado que a desatenção a essa questão coloca nossas práticas e nossas pesquisas distantes das mediações culturais que determinam a relação desses sujeitos com a leitura diminuindo, portanto, nossa chance de tentar contribuir para a superação da tensão entre a escola e as culturas juvenis, tensão que tem como um de seus pilares o conflito entre a cultura letrada e a cultura da imagem, como já diagnosticava Benjamin por volta de 1930.

A construção da vida, no momento, está muito mais no poder dos fatos que de convicções. E aliás de fatos tais, como quase nunca e em parte nenhuma se tornaram fundamento de convicções. Nessas circunstâncias, a verdadeira atividade literária não pode ter a pretensão de desenrolar-se dentro de molduras literárias – isso, pelo contrário, é a expressão usual de sua infertilidade. A atuação literária significativa só pode instituir-se em rigorosa alternância de agir e escrever; tem de cultivar as formas modestas - que correspondem melhor a sua influência em comunidades ativas que o pretencioso gesto universal do livro – em folhas volantes, brochuras, artigos de jornal e cartazes. Só essa linguagem de prontidão mostra-se atuante á altura do momento (Benjamin, 1987:11).

Diante disso, não seria mais próprio, ao invés de ficarmos batendo na tecla de que existe uma crise de leitura que afeta a escolarização de crianças e jovens, lidarmos com a idéia de que estamos diante não de uma crise, mas de um contexto histórico do qual precisamos nos aproximar para não perdermos o bonde da história?

Essas foram as questões que o exame das quatro primeiras entrevistas com jovens leitores de mangá permitiu levantar à luz dos fundamentos dos Estudos Culturais latino-americanos, e é sobre elas que esse texto se debruça, na tentativa de chamar a atenção da escola para as novas formas de leitura que a cultura da imagem vem promovendo.

     
             
      1. A opção teórico-metodológica do estudo      
     

A opção por tomar os Estudos Culturais latino-americanos como fundamento da investigação deveu-se às contribuições teóricas e metodológicas que esse campo de estudos vem trazendo à problemática do consumo cultural. Jesús Martin-Barbero (2001) –um dos autores identificados com os EC latino-americanos - propõe que o exame desse consumo seja efetuado a partir do deslocamento do foco da mensagem, ou dos meios, para as mediações. De acordo com o autor, esse deslocamento permitiria rever a condição de passividade do receptor diante da reificação da mensagem. Reconhecendo a complexidade cultural que está implícita nos diferentes usos do massivo, que remetem a novas formas de imaginação e criatividade social, o que o autor procura com essa proposta são maneiras de resignificar as relações dos sujeitos com os meios de modo a superar a visão restrita que relaciona mecanicamente capitalismo pós-industrial e subjetivação acrítica. Focalizar as mediações que constituem as audiências deixa brechas para que o receptor deixe de ser encarado apenas como consumidor de entretenimento, ou de supérfluos culturais, e passe a ser visto como produtor de cultura.

Na mesma direção, Canclini (1999) argumenta que o consumo tem uma lógica que é determinada pelas práticas sócio-culturais dos sujeitos. Assim, caberia analisar os processos de consumo como algo mais complexo do que a relação entre meios manipuladores e dóceis audiências (p. 75-6). Longe de fazer a apologia do consumo, Canclini argumenta que não é possível continuar entendendo o consumo como lugar da irreflexão, diante da qual o sujeito desaparece. Para ele, o homem pode atuar como consumidor apenas obedecendo à regulação do mercado, mas pode também, como cidadão, exercer uma reflexão e uma experimentação mais ampla do consumo, aproveitando o virtuosismo semiótico dos produtos. Relacionar consumo e exercício refletido da cidadania seria condição para se encontrar o sujeito na massa.

A preocupação com essa relação entre consumo e cidadania é comum a Martin-Barbero e Canclini que irão colocar em xeque a crítica apocalíptica à cultura de massas – produto da Indústria Cultural. Não sendo nem apocalípticos, nem integrados (Eco, 1998), ambos os autores rejeitam a idéia que aponta para o julgamento de que a cultura de massa teria um efeito narcotizante e alienador causado pela ênfase de seus produtos no mero entretenimento.

Nesse sentido, pode-se dizer que, frente à tensão das posições de Adorno e Horkheimer ( 1985 ) e de Walter Benjamin (1985) sobre a relação entre arte e técnica, ambos identificam-se com a posição de Benjamin, discordando da posição dos primeiros segundo a qual a arte banalizada pela indústria radiofônica, cinematográfica e editorial seria inimiga da consciência crítica, uma jogada do capitalismo para transformar o povo em massa de manobra. Contrariamente, segundo Martin-Barbero, Benjamin teria sido pioneiro em vislumbrar a mediação que permite pensar historicamente a relação das massas com a cultura. Desse modo, para Benjamin «pensar a experiência’ é o modo de alcançar o que irrompe na história com as massas e a técnica. Não se pode entender o que se passa culturalmente com as massas sem considerar a sua experiência. Pois, em contraste com o que ocorre na cultura culta, cuja chave está na obra, para aquela outra a chave se acha na percepção e no uso» (Martin-Barbero, 2001: 84). Essa visão de Benjamin, que reconhece na modernidade a expressão de um outro modo de percepção promoveu, segundo Martin-Barbero (2001), um novo modo de analisar e intervir sobre a industria cultural que supera a noção pessimista de que a experiência social contemporânea é fruto do obscurantismo e do empobrecimento da experiência. Para este autor, assumir esse deslocamento, que é tanto teórico quanto metodológico, é principalmente importante hoje, na América Latina, no momento em que a face transnacional do capitalismo –que se estende com o apoio dos meios de comunicação– está exigindo soluções alternativas para as contradições das sociedades, que não passam mais pela noção totalizadora da política. Desse modo, pensar a transformação social implica em pensar a prática política no interior dos laços de coesão coletiva e de pertencimento afetivo que se constituem cotidianamente. É nesse contexto, segundo o autor, que emerge na América Latina uma valorização profundamente nova do cultural (Martin-Barbero, 2001:297). Não se trata de substituir a política pela cultura, mas de investir a cultura popular, identificada com o massivo, de uma existência múltipla, ativa e criativa o que, em outros termos, suporia a politização das massas. Redefinidos pela cultura, os meios deixam de ser mera circulação de ideologia e passam a ser um processo de produção de significações, e o receptor, portanto, deixa de ser apenas um decodificador, passando a constituir-se como produtor de sentidos. Nessa perspectiva, o objeto de exame não é a ideologia da mensagem e seu efeito pernicioso sobre as audiências, mas os relatos sobre os usos dos meios a partir dos quais é possível reconhecer a mediação que a cultura exerce na recepção.

     
      2. O que jovens leitores de mangá têm a dizer sobre a leitura      
               José, João, Caroline e Juliana foram os jovens entrevistados individualmente. Os quatro se declararam apaixonados pelo mangá e deixaram claro que o gosto pelas HQs japonesas foi fruto de seu interesse anterior, quando eram menores, pelos animes (desenhos animados japoneses), como Cavaleiros do Zodíaco, Samurai X, Dragon Ball Z e Sakura Card Captors, que assistiam assiduamente na TV. José tem dezesseis anos, mora em Brasília com os pais, é estudante do 1º ano do Ensino Médio de uma escola particular de prestígio. Seu pai é diplomata e sua mãe fotógrafa, ele tem um irmão menor que também é aficcionado pelos desenhos animados japoneses (animes) e pelos mangás. Em virtude da profissão do pai, José morou fora do Brasil, tendo conhecido as HQs no Chile. João é filho único, tem dezenove anos, mora em Guadalupe (bairro da zona norte do Rio de Janeiro) com a mãe e a avó, é aluno do Curso de Nutrição da UERJ e coordenador do grupo jovem da Igreja Católica perto de sua casa. Seus pais são engenheiros civis. João se auto define como sendo pertencente à classe média baixa. Juliana tem 20 anos, mora em Piedade (também subúrbio do Rio de Janeiro) com a mãe, que é auxiliar de bar. É caloura da Faculdade de Educação da UERJ, tendo ingressado pelo sistema de cotas. Caroline tem 21 anos, reside em Copacabana (bairro da zona sul do Rio de Janeiro) com pai, mãe e duas irmãs. O pai é psicanalista e a mãe psicóloga. Ela frequenta o 5º período da Faculdade de Educação da UERJ.

         A atenção à sugestão do referencial teórico privilegiado, de que deslocássemos o foco dos meios/mensagem para o discurso que o receptor produz sobre os meios aliada à não intimidade do grupo de pesquisa com o universo dos mangás e ao fato de haver entre os entrevistadores jovens da mesma geração dos entrevistados, permitiu superar metodologicamente a situação de dissimetria que, muitas vezes, caracteriza a entrevista. Nesse sentido, foi interessante verificar como os jovens se sentiram à vontade diante o gravador –mesmo as entrevistas tendo ocorrido no espaço da universidade– não havendo por parte de nenhum dos quatro aquela tendência a controlar a informação frente à superioridade dos pesquisadores, como se soubessem que naquela situação era a eles que cabia a posição de serem mestres – mestres em mangá.

         É importante destacar que as falas dos jovens relativas à leitura emergiram de sua condição de leitores de mangá, meio de comunicação de massa que, como o grupo de pesquisa tem podido verificar, a escola desconhece ou desvaloriza, não obstante sua penetração significativa no cotidiano de crianças e jovens. Numa de minhas idas a uma livraria especializada em mangá, entabulei uma conversa com dois jovens aparentemente de classe média, de 16 e 17 anos, e ouvi do primeiro o depoimento de que o que o irritava demais na escola que frequentava era o fato de os professores condenarem sua atração pelas revistas japonesas, considerando-as como lixo, sem sequer as conhecerem. Esse depoimento, que se repete nas falas dos entrevistados, reflete a tendência da escola de continuar se atribuindo o papel de divulgar os cânones literários, deslegitimando as experiências de crianças e jovens com a literatura de massa, o que supõe ignorar as mediações que constituem a experiência e, consequentemente, fechar os olhos à historicidade que está implícita à emergência das práticas contemporâneas de leitura.

         Freitas (2002), referindo-se à pesquisa «Práticas sócio-culturais de leitura e escrita de crianças e adolescentes», por ela coordenada na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, aponta que dentre as práticas de leitura ressaltadas nos depoimentos dos entrevistados, emerge a presença significativa de uma leitura da imagem determinada pelos novos instrumentos culturais da contemporaneidade, como a TV, o cinema e o computador. Comentando sobre a perplexidade dos adultos frente à rapidez das transformações que ocorrem no mundo, a autora aponta o quanto é necessário que essa perplexidade não seja responsável pela inércia, mas que incite a compreensão.

         Queremos compreender o mundo de hoje, que, para nós adultos, nos parece tão estranho, mas que é natural e sem estranheza para a criança e o adolescente que nele vivem. Pertencemos a uma outra geração, poderíamos até dizer a uma outra cultura e, se queremos de fato educar nossas crianças e adolescentes, não podemos ficar apenas perplexos e distantes da realidade em que vivem. É preciso nela penetrar, tentar enxergá-la a partir de seu olhar, caminhar junto com eles (p.97).

         Na mesma linha de reflexão, Jobim e Souza, Miranda e Camerini (2002), falando das contribuições que a pesquisa «Subjetividade em imagens: dialogismo e alteridade na produção do conhecimento» traz ao tema da leitura, referem-se à necessidade de que o campo de questionamentos em torno a esse tema seja ampliado «a partir da mediação da imagem técnica como um novo elemento que compõe a produção da subjetividade e do conhecimento na atualidade» (p.84). De acordo com as autoras, embora se deva estar atento ao mau uso que os meios de comunicação fazem das imagens... é necessário reconhecer [...] o poder extraordinário que as imagens conferem à experiência atual, especialmente no que diz respeito aos modos de circulação de informação e de produção do conhecimento, criando assim novas relações culturais. [...] Exatamente porque somos moldados na e pela imagem é que conseguimos compreendê-la como signo, sendo, portanto, fundamental desenvolver com o signo-imagem o compromisso com a liberdade criativa do homem. Devemos então articular a imagem técnica à sua dimensão política e compreendê-la como um dos principais vetores de nosso processo de subjetivação (p.85).

         Nessa mesma direção, Almeida (1994) lembra que uma das causas da separação entre a educação e a cultura é que «atualmente há uma grande quantidade de pessoas cuja inteligência foi e está sendo educada por imagens e sons, pela quantidade e qualidade de cinema e televisão a que assistem e não mais pelo texto escrito» (p.8).

         Os depoimentos dos jovens mostram que essa educação pela imagem, para a qual Benjamin (1985, 1987) já chamava atenção, é mediadora do mal estar diante do livro. Se as falas apontaram para outras mediações responsáveis por marcar diferenças e aproximações entre os quatro relativas (a) às preferências de cada um por um/a ou outro/a herói/heroína de mangá, (b) aos modos diversos de recepção do mangá, (c) às maneiras variadas como se conectam às redes de sociabilidade que o consumo do mangá enseja, (d) às diferentes estratégias pelas quais se tornam experts em mangá, numa questão houve unanimidade: nenhum dos quatro gosta de ler ³. Como disse José:

         Eu só lia pra escola. Lá no Chile tinha um currículo que era um livro por mês e ia fazendo prova, lia por causa da escola, eu sempre lia, mas por conta própria eu sempre ficava sem saco. Fui tentar ler O Senhor dos Anéis e não terminei nem de ler o prólogo.

         Mas gostam de ler mangá. Por que? A essa pergunta José, Juliana e Caroline responderam o seguinte:

         Não sei acho que os mangás têm uma coisa: primeiro que o esquema dos mangás é diferente dos quadrinhos americanos pela estrutura da página. Assim, os personagens não têm que ficar enquadrados no quadrinho, não tem uma regra assim. Aí o desenhista vai extrapola em tudo e fica uma coisa bem dinâmica. Você lê e acaba sendo uma espécie de ..... Você tá vendo um filme [...]. É bem cinematográfico, é como se você tivesse lendo um cinema. Aí é bem legal de ler é bem divertido... É como se você tivesse vendo um filme só que em papel (José).

         O texto escrito convencional é normalmente muito lento, tudo é passado com muita lerdeza, é menos dinâmico você não tem uma coisa que HÓÓ!!! Não, e você vai ter que ler tudo com muita calma, você não pode pegar assim como eu faço com o mangá: pegar, ler todas as folhas, ver as imagens, sentir as imagens e depois partir pra leitura... Eu vou ter que partir direto pra leitura, não tem preparação, eu não posso me preparar pra entrar na leitura, eu vou ter que sair lendo. Esta é pra mim a diferença. Porque as pessoas preferem ir ao cinema do que ler um livro? Porque lá tá a ação, tá tudo. Quando você lê o mangá você leu aquilo ali você vai imaginar a próxima cena. Mas quando eu leio Harry Porter eu vou ter que ficar ali um tempão parada lendo aquilo, eu não posso parar e fazer outra coisa. Não, eu tenho que ler todinho pra entende. Quando eu pego o mangá eu posso ficar passando folha e observando as imagens e entender o que está dizendo ali, pelo menos com relação às imagens (Juliana).

         Porque, normalmente, os livros são extremamente maçantes… São linhas enormes… Páginas inteiras… Só escrito… Só nhenhenhem, e aí no livro, naquele bando de linha, de letra... Você fica olhando aquele festival de letras e lá dentro é que tem a explicação de como é a imagem que você tem que formar do que está acontecendo. No mangá não. Eles te dão a imagem e dizem o que as pessoas estão dizendo pela escrita. Fica muito mais fácil! Porque se você pegasse um livro e, nas imagens do livro, você colocasse as falas das pessoas, em vez de descrever… Porque a descrição é sacal! «E tinha uma flor vermelha no vaso de cristal no lado… No canto esquerdo da sala com um espelho enorme, uma foto da vovozinha e o tapete era persa…». No mangá não, lá tem o desenho. Você já vê como é que é o negócio. Claro que tudo em preto e branco, aí você colore com a sua mente! (Caroline).

         Procurando informações sobre as HQs japonesas, entendemos porque esses jovens reconhecem com tanta perspicácia a relação entre mangá e a linguagem cinematográfica, e porque essa relação provoca tamanha sedução. Segundo Meireles (2004) a grande sacada dos mangakas _ desenhistas de mangá – foi adaptar elementos da linguagem dos desenhos animados ao desenho impresso buscando com isso exatamente trazer o leitor para dentro da ação. Essa eficiência das empresas de entretenimento que produzem mangá é visível face às informações sobre o número crescente de crianças e jovens que vêm aderindo, em escala mundial, a essa mercadoria. Com relação aos nossos entrevistados, os quatro destacaram que, diante da força do mangá, os comics americanos «perderam a graça». E, dentre os motivos que levantam para explicar sua preferência, destaca-se, como mostram as falas, o dinamismo da linguagem do mangá. Segundo Luyten, citada por Meireles (2004):

         [...] O advento da televisão, em 1953, no Japão, causou forte impacto na mídia impressa, e o visual do mangá moderno teve início com a nova orientação gráfica emprestada pelos artistas da época. As histórias em quadrinhos ganharam um movimento incrivelmente maior [...] Com a popularização da televisão, os mangás ganharam muito mais dinamismo na técnica de diagramação. [...] A mídia impressa, ao sentir-se ameaçada, soube tirar proveito da televisão e adaptou-a aos quadrinhos. Isso, no Japão, se deu de modo mais intenso do que em outros países. A nova geração de desenhistas pós-televisão desenvolveu uma linguagem visual com o uso mínimo de palavras. [...] A estrutura narrativa dos mangás é muito mais fluida que a ocidental, pois há presença abundante de quadrinhos multiformes e linguagem cinematográfica. Uma pessoa leva cerca de 20 minutos para ler 320 páginas (p. 167).

         320 páginas em 20 minutos!? Essa é uma informação que não pode senão causar perplexidade à geração que foi educada na tradição da cultura letrada pela qual é por intermédio da palavra escrita que se chega à imagem visual, tal como descreveu Caroline em sua crítica contundente à maneira como o processo literário enseja a imaginação visiva. Essa perplexidade, que atingiu o grupo de pesquisa, pode ser compreendida pela seguinte reflexão de Italo Calvino. Segundo o autor, para o conhecimento se constituir como «repertório do potencial» e não como dado inquestionável, é importante deter «o poder de evocar imagens in absentia». E como, pergunta ele, isso poderá ocorrer «numa humanidade cada vez mais inundada pelo dilúvio das imagens pré-fabricadas?» (Calvino, 1990:107).

         Hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de não podermos distinguir mais a experiência direta daquilo que vimos há poucos segundos na televisão. Em nossa memória se depositam, por extratos sucessivos, mil estilhaços de imagens, semelhantes a um depósito de lixo, onde é cada vez menos provável que uma delas adquira relevo (Ibid, p.107).

         Interessados justamente em saber como os jovens se sairiam diante do argumento da ditadura da imagem hoje, os instigamos a se colocarem em relação ao contraste entre o autoritarismo da imagem técnica e a liberdade de evocação de imagens que o livro permite. A essa provocação seguiram-se ricas considerações, dentre as quais foram selecionadas as duas abaixo:

         José: Não, pra mim o mangá não é menos importante do que o livro, mas pra outras pessoas talvez seja.
         Pesq: Para que outras pessoas, por exemplo?
         José: Não sei, os intelectuais...
         Pesq: Os intelectuais não consideram o mangá importante, é isso?
         José: É. Mas pra mim conta. Eu acho que a mesma mensagem que o livro traz pra pessoa o mangá também pode traze,r só que por outro meio de expressão, de comunicação.
         Antigamente, não tinha rádio, não tinha televisão, não tinha nada disso que a gente tem hoje, Não tinha computador então, você… Você vê… Foi a evolução… Foi criando todos esses aparelhos maravilhosos, né? É… Eu digo que… Ah… Eu nem gosto da televisão porque eu tenho um pouco de raiva, porque, talvez, se eu não tivesse conhecido a televisão, não tivesse convivido com ela desde pequena, eu não… Eu seria muito mais ligada aos livros, provavelmente, porque seria a minha única forma de diversão. Mas como eu tenho uma coisa muito mais legal pra ver na televisão do que nos livros… É horrível dizer isso… (Caroline).

         Tudo indica que esses jovens estejam se referindo à presença de um confronto de gerações no que se refere à compreensão e à valorização das práticas de leitura na contemporaneidade. Falando sobre isso, Jobim e Souza e Gamba Jr (2003) apontam que:

         Em sala de aula, na relação com a leitura e a escrita, encontramos hoje a representação concreta desse abismo de gerações. De um lado o professor, com sua história e sua temporalidade inscritas em modos particulares de leitura, formados a partir de sua inserção acadêmica e profissional; de outro lado, o aluno, representando o novo trazido por sua geração e pela cultura já modificada que a permeia. Nesse distanciamento espaço-temporal entre a história do professor e a vivência do aluno é que percebemos nos artefatos culturais, ou seja, nos objetos concretos que passam a mediar as relações de alunos e professores com os atos de leitura e escrita, um obstáculo que por vezes dificulta a integração da experiência de adultos e crianças (.p. 35).

         Nascidas e imersas no contexto cultural da chamada «pós-modernidade», as gerações mais novas são influenciadas pelas complexas transformações culturais contemporâneas que lhes conferem maneiras de entrar em cena como atores sociais radicalmente diferentes daquelas de gerações anteriores. Compreender que essa mediação exerce um papel determinante na forma como a infância e a juventude são construídas e vividas seria fundamental à eliminação da barreira que vem se levantando entre a «cultura da escola», centrada na cultura letrada, e as culturas infantil e juvenil que vêm sendo constituídas pelo convívio cotidiano de crianças e jovens com a imagem técnica.

     
      3. Considerações finais      
     

Influenciado pela visão crítica que os Estudos Culturais latino-americanos têm imprimido ao estudo da recepção/consumo cultural e valendo-se da interlocução das contribuições que alguns autores, como os citados acima, vêm trazendo ao campo de estudos sobre a leitura na contemporaneidade, o grupo de pesquisa tem podido interpretar que a relação que os entrevistados estabelecem entre leitura e imagem aponta para um perfil de leitor diverso do perfil do leitor do livro o que, na visão dos quatro jovens, não implica na temida e anunciada morte do leitor. Muito pelo contrário, em seus longos depoimentos eles revelaram a face do leitor com a qual a modernidade, em sua dimensão emancipadora, sonhou e continua sonhando: além de extremamente comunicativos, versáteis na apresentação de suas idéias, com um perfil que se afasta bastante da maneira como o imaginário social apresenta, muitas vezes, os jovens - alienados, superficiais, levianos, inconsequentes - impressionou-nos constatar como eles e elas demonstraram um conhecimento esmerado de questões históricas, filosóficas, mitológicas relacionadas às HQs japonesas, que é buscado em bibliotecas, na internet, na leitura minuciosa das próprios quadrinhos ou, ainda, com leitores mais experientes. Por isso, à nossa insinuação provocativa de que não era possível que a rapidez da leitura do mangá permitisse que o conteúdo ficasse retido na cabeça deles, José não hesitou em responder enfaticamente: Fica, fica sim!

Cabe, finalmente, dizer que a tentativa de aproximação dos mangás pelo grupo de pesquisa não surtiu o efeito anunciado pela propaganda efusiva dos jovens entrevistados. Não nos identificamos com o estranho mundo das HQs japonesas. Mas a perspectiva teórico-metodológica que privilegiamos, que nos levou a colocar o foco de nossa atenção não na análise desse meio, mas nas mediações responsáveis pela sedução que ele exerce nos sujeitos, nos permitiu a reflexão de que o estranhamento dos quatro diante do livro pode não ser fruto de uma crise de leitura, mas sim fruto da experiência dos mesmos com a imagem técnica. Ao considerar as experiências dos quatro, pudemos entender o que se passa culturalmente com eles na perspectiva da alteridade e não do etnocentrismo.

     
     
Referencias
     
     

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BOLLE, W. (1994): Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. São Paulo, EDUSP.
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CANCLINI, N. G. (1999): Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro, UFRJ.
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Maria Luiza Oswald é professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil) (moswald@gbl.com.br).